quinta-feira, setembro 06, 2012

Postais das Selvagens


14 - Tem ovo?

Ninho de alma-negra identificado por uma placa cor-de-laranja
numerada. A diminuta entrada não é de todo óbvia nesta fotografia.

A partir da primeira semana de Julho começamos a vistoriar diariamente os ninhos das almas-negras. As aves estão nesta altura no final da incubação e queríamos saber exactamente a data de eclosão das crias pelo que era necessário visitar todos os dias os ninhos, por um lado para saber se já tinham eclodido e por outro lado para confirmar que a postura não se tinha perdido por predação ou por abandono dos pais.
As almas-negras são lindíssimas, com a sua plumagem escura, quase preta, e o bico escuro e aguçado. Felizmente para os nossos dedos, este bico, apesar de aguçado, é muito mais pequeno do que o das cagarras, fruto da alma-negra ser uma ave substancialmente mais pequena. Digo felizmente porque para determinar se a ave estava ainda a incubar ou se a cria já tinha nascido, torna-se necessário por a mão dentro do ninho, mas ao contrário do que acontecia com as cagarras, aqui não podemos usar luvas pois de outra forma não teríamos a sensibilidade necessária para sentir o pequeno ovo sob a ave.
Convém explicar que os ninhos das almas-negras são orifícios entre pedras, com uma entrada estreita que mal dá para colocar a nossa mão. Requer um pouco de coragem enfiar a mão num buraco escuro, sabendo à partida que lá dentro está um pequeno animal a incubar, que para defender a prole vai recorrer à sua principal arma, o bico aguçado de ponta retorcida com que pescam peixes no mar alto. Algumas aves são mais calmas e deixam-nos colocar os dedos sobre elas para sentir o ovo sem recorrerem à bicada, ficando simplesmente a olhar para nós com ar reprovador. Outras, mais mal-dispostas, desatam a bicar os nossos dedos para deixar claro que não admitem aquele tipo de intromissão indevida nas suas vidas. Ao fim de algumas dezenas de ninhos, inevitavelmente, as nossas mãos pingam já algum sangue em dois ou três sítios diferentes.
Como a necessidade aguça o engenho, e a dor ainda o aguça mais, eventualmente comecei a usar um pequeno pauzinho comprido que introduzia cuidadosamente no ninho para desviar suavemente a ave de forma a conseguir avistar o ovo. Claro que isto só era possível nos ninhos mais abertos, ou nos casos em que era possível desviar algumas pedritas para espreitar para o interior, nos restantes casos era mesmo inevitável enfiar a mão lá dentro, aguentar as bicadas furiosas e tentar não imaginar cenas de filmes em que alguém enfia a mão num buraco escuro sem saber que lá dentro o espera uma enorme aranha, uma serpente venenosa ou uma profusão de vários vermes, insectos e outros animais rastejantes de índole desagradável, como acontecia num dos filmes do Indiana Jones.

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