sábado, setembro 29, 2012

Postais das Selvagens

29 - Sensação de ser presa

Pôr-do-Sol na Baía das Cagarras, onde nadei tantas vezes com os peixes.
Uma das espécies de peixe que me ia faltando avistar na Selvagem Grande era o peixe-porco. O Cristóbal que costuma ir nadar até mais longe já os tinha visto, pelo que um dia pedi emprestadas umas barbatanas e decidi ir nadar até à ponta mais distante da Baía das Cagarras.
Fui nadando, usufruindo do efeito acelerador das barbatanas. Acho que pensei que devia ser assim que o Michael Phelps se sente quando nada. Fui vendo as espécies habituais e vendo o fundo a ficar cada vez mais distante. Eventualmente cheguei à parte mais profunda da baía onde o mar deve ter já mais de vinte metros de profundidade. Graças às águas cristalinas das Selvagens o fundo é perfeitamente visível, mesmo a estas profundidades, consegue-se ver cada pedra e cada peixe como se houvesse apenas ar entre nós. Segundo dizem, o capitão Costeau quando mergulhou aqui disse serem as águas mais cristalinas que já conhecera e em dias de boa visibilidade pode-se ver a quarenta metros de profundidade.
Nesta zona a baía parece um imenso aquário natural, e vindos do azul profundo lá apareceram os peixes-porco. Primeiro três ou quatro, depois uma dúzia, duas. Eventualmente contei oitenta destes peixes a nadar em meu redor, agitando as longas barbatanas enquanto iam navegando em uníssono. O peixe-porco tem uns dentes bastante afiados, que geralmente são visíveis nas suas bocas entreabertas, e são conhecidos por darem por vezes dentadas dolorosas, pelo que convém ter algum cuidado na sua presença. Assim, quando segui caminho e notei que o cardume me seguia, comecei a olhar para eles com um olhar mais suspeito. Continuei a nadar em direção à ponta da baía e o cardume seguia o mesmo rumo que eu, nadando por baixo de mim. Quando me aproximava mais das rochas eles afastavam-se um pouco, pareciam preferir águas mais abertas, mas logo que me encontrava numa zona mais funda lá estavam eles por baixo de mim.
Chegado à ponta, e inspecionados os peixes que se viam por lá, comecei a nadar de volta a casa. Mal mudei de direção, os peixes-porco fizeram o mesmo. Comecei a achar que de certa forma faziam lembrar um cardume de piranhas gigantes em tons mais cinzentos. Fui nadando e lá seguiam eles atrás de mim. Não me senti muito ameaçado porque sabia que se me aproximasse das pedras eles se afastariam, mas ainda assim comecei a sentir uma pouco como se sente uma presa. Por que razão me seguiam eles? Achariam que eu era um grande predador e esperavam por restos da minha caçada? Estavam meramente curiosos? Ou teriam mais curiosidade sobre qual seria o meu sabor? Não me apetecia muito testar a terceira hipótese, até porque uma dentada de peixe-porco não será certamente letal, mas é bastante dolorosa e alguns dos peixes por baixo de mim tinham facilmente meio metro de comprimento. Continuei o meu caminho, nunca muito longe das rochas e quando cheguei a águas menos profundas eles desistiram de me seguir. Foi espetacular ver o cardume de peixes enormes tão de perto, mas também senti algum alívio quando os vi pelas costas.

sábado, setembro 22, 2012

Postais das Selvagens


28 – Rotina e não só

A Selvagem acompanhava-nos quase sempre nas nossas surtidas nocturnas
 ao planalto em busca de almas-negras. 

Apesar de ser o principal motivo da estadia na ilha, o trabalho acaba por ser pouco apelativo quando penso no que relatar aqui, pelo que vai sendo preterido em favor de outras aventuras. Contudo, o trabalho era também muito interessante e até divertido em algumas ocasiões.
Diariamente, visitávamos cada ninho de alma-negra para pesar as crias, que a pouco e pouco se iam aproximando do peso dos adultos. Depois da fase inicial, em que perdemos algumas, as fatalidades tornaram-se muito mais raras e fomos acompanhando cada cria, ao longo dos seus aumentos e perdas de peso que relatam os padrões de vindas ao ninho dos seus progenitores. A meio da segunda estadia tínhamos já crias com pesos equiparáveis aos dos adultos, enquanto que outras continuavam ainda num limbo entre a sobrevivência e a morte por inanição. As maiores começavam já a desenvolver as primeiras penas, ficando com o corpo coberto de pequenos canudos de onde despontavam diminutas penas.
Outra parte do trabalho implicava procurar ninhos novos, uns para servir de controlo, outros para recolher amostras de sangue de adultos e crias, de forma a determinar com base nos isótopos de alguns elementos no seu sangue as diferenças ou semelhanças nas suas dietas. Por incrível que pareça os adultos podem ingerir algumas presas e trazer outras diferentes para o ninho para alimentar as suas crias. Este trabalho de procura implicava procurar orifícios com a dimensão e o aspecto geral de ninhos e espreitar ou apalpar o terreno em busca de crias de alma-negra. Existem algumas pistas úteis, nomeadamente pequenas casca de ovo que são espalhadas perto do ninho depois da eclosão, assim como as manchas brancas dos dejectos das aves, mas o trabalho acabava sempre por ser difícil e raramente encontrávamos mais do que três ou quatro ninhos por dia.
Com o final da estadia a espreitar cada vez mais próximo, começava a ficar inquieto com as responsabilidades finais. Por um lado teríamos de capturar vinte adultos dos ninhos de estudo, para lhes colocar os geolocators que irão registar as suas migrações até à próxima época de reprodução. Esta tarefa tem como dificuldade encontrar os adultos, que nesta fase do desenvolvimento das crias só vêm ao ninho durante a noite, e não vêm todas as noites. Veremos como corre quando chegar a altura, na próxima semana. A outra tarefa passa por recolher as tais amostras de sangue de vinte crias e vinte adultos nos ninhos novos, o que tem a mesma dificuldade de conseguir encontrar adultos suficientes, mesmo de noite, com a agravante de até ao momento termos apenas trinta ninhos detectados. Dentro de dias, ou aliás de noites, começaremos esta tarefa.
Pelo meio, houve ainda tempo de recapturar o tal painho-de-Swinhoe, espécie de outros oceanos que parece visitar por vezes esta região. Tratava-se da mesma ave que capturamos anteriormente, tendo a sua anilha portuguesa novinha em folha para o provar.

sexta-feira, setembro 21, 2012

Postais das Selvagens


27 – Não é todos os dias

O paínho-de-Swinhoe na altura da sua libertação. A plumagem toda escura
 incluíndo a zona na base da cauda, a banda diagonal mais cinzenta na asa
 e o branco na base das penas de voo são algumas das características desta
espécie. (Fotografia tirada por Lourenço Alves) 

Muitos biólogos têm o seu quê de coleccionistas. Coleccionam animais, coleccionam plantas, coleccionam a porção das miríades de espécies que povoam o nosso planeta que já tiveram a sorte ou o engenho de avistar. Possivelmente os piores de todos são os ornitólogos. Conheço muitos que mantém listas das aves observadas em cada dia, em cada país, em cada estação do ano, em cada casa ou cidade onde viveram. Eu não levo a coisa a esse extremo, mas gosto de manter a minha lista das espécies que já observei e gosto sempre de somar mais uma espécie à lista.
A minha vinda às Selvagens rapidamente rendeu várias espécies novas, espécies oceânicas muito dificeis de avistar no continente, como a alma-negra e o calcamar, ou espécies endémicas das ilhas do Atlântico, como o corre-caminhos. Na Selvagem Grande fora já avistada um par de vezes uma espécie de ave marinha cuja área de distribuição habitual é o noroeste do Pacífico, nos mares do Japão e da China, mas que visita por vezes o nosso Atlântico. Trata-se do paínho-de-Swinhoe, ou Oceanodroma monorhis, uma espécie que faz lembrar uma alma-negra em miniatura, tendo também a plumagem predominantemente preta. Quis o destino que numa das noites em que subimos ao planalto, enquanto espreitava um ninho de alma-negra, o Cristobal me perguntasse: " e esta que aqui está no chão, queres que eu apanhe?". Eu disse que sim, que a segurasse um pouco para ver se tinha anilha. Não tendo anilha, a ave ia ser libertada, mas quando eu me voltei para trás e olho para o animal nas mãos do Cristóbal notei logo que havia ali algo de diferente. Fazia lembrar uma alma-negra, sim, mas era muito mais pequena. "Espera" disse eu, "isso não é uma alma-negra". Foi aí que o Cristóbal também olhou para ela com mais cuidado e notou o seu erro. Tratava-se claramente do esquivo e improvável paínho-de-Swinhoe.
Claro que não perdemos a oportunidade para documentar a nossa descoberta. A ave foi profusamente fotografada de múltiplos ângulos e pormenores, foi medida, pesada e finalmente anilhada. Posso dizer que sou um dos pouquíssimos portugueses, se não mesmo o único, que alguma vez anilharam uma ave destas. Não é todos os dias...

quinta-feira, setembro 20, 2012

Postais das Selvagens


26 – Grutas

A Gruta do Chão na maré vazia, com o mar a espreitar à entrada e a luz da
clarabóia natural a marcar a parede oposta.

A geologia áspera da Selvagem Grande, fruto de grandes erupções submarinas do passado, gerou um sem número de formações de rocha rude, imagens de uma terra ainda pouco conformada com a sua solidez. Entre estes atractivos estão as várias grutas que penetram profundamente o chão pétreo da ilha. Existem várias grutas menores, mas as principais são a Gruta do Inferno e a Gruta do Capitão Kidd, existindo também uma outra gruta junto ao mar, na Baía das Galinhas, a Gruta do Chão, que merece uma visita cuidadosa.
A primeira gruta que visitei foi a gruta do Inferno, localizada numa fenda profundamente cravada na face do promontório encimado pelo Pico do Inferno, de que falei quando descrevi a ilha. É possível chegar lá por terra, descendo cuidadosamente a encosta íngreme, mas foi por mar que a visitei. Saímos de bote, navegando a ondulação sobre os tais azuis impossíveis destas águas. Depois de contornadas as rochas que dividem a Baía das Cagarras da Baía das Galinhas, avançamos a direito até ao outro extremo da enseada, onde a terra rasga o mar de forma abrupta até às alturas do Inferno... o pico, claro. O bote encostou às rochas negras e brutas, cobertas de cracas e outros animais de índole cortante, e nós saltamos do bote e amarinhamos pela rocha acima, até ao ponto cerca de quinze metros acima do nível do mar onde tem início a gruta. À entrada tem um tufo de erva verde, como que uma despedida das cores do mundo antes de descer ao negrume do inferno. A gruta tem secção triangular, com as arestas laterais muito maiores que a da base, encontrando-se lá em cima, muitos metros acima das nossas cabeças. Lá dentro, patrulham com os olhos algumas cagarras que por ali fazem ninho, sob os blocos tremendos que brotam das paredes como cogumelos. Pedras vulcânicas aqui e ali entremeadas com filões calcários e manchas brancas que talvez fossem de salitre. A gruta perfura a rocha numa extensão de mais de cem metros, até ao seu término, sempre triangular, onde mal cabe uma pessoa. Nesse ponto, mesmo olhando para trás, parece que nem um único fotão chega aos nossos olhos. Não foram as luzes dos frontais e pareceria que a luz era algo que nunca existira. Algumas rochas têm pequenos cristais brilhantes, que refulgem sob as nossas luzes, e em alguns pontos infiltra-se água, e o ponto alto da visita à gruta acaba mesmo por ser o triângulo luminoso que nos abraça quando volvemos à entrada, agora tornada saída deste reino que de infernal afinal tinha apenas o nome.
A visita seguinte às grutas voltou a ser à gruta do Inferno. Desta feita fomos por terra e percebi finalmente porque se chama Gruta do Inferno. A descida é um verdadeiro inferno de rochas soltas, declives abruptos e quedas semi-controladas até à base do precipício. Saídos do inferno, seguimos ao longo da costa, saltando sobre grandes lages de basalto, até à Gruta do Chão. Esta gruta é relativamente pequena, e o mar entra lá dentro durante a maré-alta, sendo o chão de calhau rolado de basalto escuro. A gruta tem duas entradas, ambas com o mar azul em fundo, e por cima das nossas cabeças abre-se uma clarabóia natural que permite a entrada de ainda mais luz, fazendo um efeito bastante bonito.
No dia seguinte fomos finalmente à mítica Gruta do Capitão Kidd. Não se sabe ao certo de onde veio nome da gruta, mas a verdade é que já vários lá foram escavar em busca do tesouro do famoso pirata. Chega-se à gruta descendo a vertente da Baía das Pardelas, do lado nordeste da ilha, chegando-se a um grande lageado basáltico junto ao mar, cheio de pequenas poças com pequenos peixes, lapas e ouriços-do-mar. A gruta começa numa abertura ampla e é formada por uma câmara larga e relativamente alta, tendo um buraco no meio por onde entra o mar. Dentro da gruta ouve-se o bater das ondas no fundo do buraco e avistam-se os vestígios das escavações antigas dos caçadores de tesouros. A vista mais bonita é a da entrada vista do interior, sendo a luz como que filtrada em tons esbranquiçados, dando à gruta um tom vagamente onírico.
Completei assim o meu périplo pelas grutas da ilha. Agora sim sou um veterano da ilha.

quarta-feira, setembro 19, 2012

Postais das Selvagens


25 – Azuis impossíveis

Uma tentativa de fotografar os azuis impossíveis do mar
em redor da Selvagem Grande, mas que não faz de forma
alguma justiça à realidade.

A segunda estadia começou sobre ventos fortes e céus nublados. Foram os mesmos ventos que tanto trabalho deram aos bombeiros que combatiam os terríveis incêndios que assolaram a Madeira nessa altura. O constante uivar do vento é cansativo, a alguns pode até levar às margens ténues entre a sanidade e a loucura. Para mim o pior é mesmo o esforço extra em tudo o que fazemos. Os papéis voam, as páginas dos cadernos esvoaçam, o material no campo salta e foge e a pesagem das crias, com uma pesola, torna-se um verdadeiro pesadelo. Eventualmente tivemos de começar a levar connosco um balde fundo onde podíamos fazer as pesagens sem a perturbação do vento.
Ao fim de 5 ou 6 dias veio finalmente tempo melhor. O dia nasceu cinzento, mas o vento tinha abrandado e pela tarde a ilha foi emersa numa tarde verdadeiramente gloriosa. Para aproveitar o bom tempo saímos de bote, para visitar algumas zonas da ilha só acessíveis por mar. Contornamos a ilha por norte, chegando à Baía da Atalaia, dominada pelo farol da ilha. Em certo ponto existe um local onde o mar penetra a falésia num rasgo fundo, com uns quatro metros de largura e uns cinquenta ou sessenta de comprimento, onde é possível entra de bote. Sob o sol que entrava entre as rochas, a água é infinitamente límpida e quando mergulhamos o azul, claro e fundo em simultâneo, era uma daquelas cores impossíveis que parecem só existir na paleta de cores dos programas de edição de imagem.
Continuamos a seguir a costa da Baía da Atalaia até um recanto onde o Lourenço tinha de ir a terra para eliminar alguns exemplares de Nicotiana, plantas invasoras que o Parque Natural tem vindo a tentar eliminar da ilha. Existem na ilha duas espécies, ambas não nativas, sendo uma delas a planta do tabaco. Voltamos a mergulhar, agora numas águas em tudo semelhantes às da Baía das Cagarras, junto à casa, onde nado diariamente. A diferença era os peixes, ainda mais abundantes e em tamanhos impressionantes. Vimos garoupas com mais de meio metro, um encharéu enorme, que teria talvez perto de um metro de comprimento, e vi finalmente duas das espécies que me iam escapando nos meus mergulhos: o mero e o sargo-veado. O mero era um exemplar relativamente pequeno, tendo em conta que esta espécie chega a atingir os dois metros, tratava-se de um exemplar com não mais de cinquenta centímetros. Os sargos-veados são semelhantes ao sargo comum, mas com largas bandas pretas ao longo do corpo, que lhe dão um aspecto de zebra marinha.
Antes de voltar à base, afasta-mo-nos da ilha para espreitar o Baixio da Joana, uma formação rochosa submarina localizadas a cerca de um quilómetro de terra, que em algumas zonas quase chega à superfície do mar. Voltamos a mergulhar. Aqui estávamos claramente já nos domínios de Neptuno. À nossa volta o oceano era de um tom de azul tremendo, uma cor forte, profunda, refrescante, quase assustadora, mais um azul impossível por entre o qual nadavam literalmente milhares de peixes. As espécies eram as mesmas que vemos em terra, as preguiçosas, as bogas, as dobradas, mas aqui formavam enormes cardumes que teriam de certo vários milhares de indivíduos. Nadei por ali alguns minutos, quase com vontade de chorar perante tanta beleza. Não chorei, mas absorvi profundamente aquelas imagens para não mais esquecer.

terça-feira, setembro 18, 2012

Grandes verdades...

Na minha humilde opinião serão pelo menos 20 vezes...

Postais das Selvagens


24 – A rendição

O N.R.P. Schultz Xavier durante a rendição.

Como fiquei na Selvagem Grande duas estadias, ou seja seis semanas consecutivas, chegou o dia médio em que foi feita uma rendição, indo-se embora a restante equipa que estava comigo na ilha, a Maria e o Jaques, e chegando a nova equipa para as três semanas seguintes, o Cristóbal, o Federico, o Lourenço, a Joana, e outra Maria, como que confirmando que todas as portuguesas são marias, até as bolachas.
Depois dos atrasos e adiamentos habituais, resultantes de uma aparente falta de organização, ou comunicação, da marinha portuguesa, lá chegaram eles, um dia depois do previsto. O barco, o balizador N.R.P. Schultz Xavier chegou e começou logo por perder uma balsa salva-vidas, que voou com o vento sem que ninguém a conseguisse apanhar. Entre perseguições à balsa por bote e com o próprio navio, lá conseguiram atrasar tudo mais umas boas horas. Depois o comandante do navio decidiu não fundear o barco, o que fez com que o barco estivesse sempre a mudar de posição, devido ao vento e à ondulação, o que em muito complicou o trabalho do bote da reserva. Pergunto-me o que aconteceria à nossa marinha se um dia tivessem de tomar parte num conflito armado... Depois veio a tarefa de descarregar todo o material e pessoas, o que requeriu uma série de viagens do bote e muito trabalho para acartar tudo para casa. Finda a rendição, cá estava eu, na ilha, com um grupo completamente diferente de pessoas.
As segundas três semanas começavam e logo se tornou claro que o tom da estadia tinha mudado. Com um grupo maior de pessoas tudo ficou (ainda) mais animado: as refeições, o trabalho de campo, as subidas nocturnas ao planalto e claro, as noites passadas a jogar à cartas na varanda. Cabia-me agora ensinar à nova Maria tudo o que ela necessitava de saber para continuar o trabalho das almas-negras de forma autónoma, depois de eu partir. Felizmente ela mostrou-se uma boa aluna e rapidamente entrou dentro do ritmo habitual de visitas aos ninhos, pesagens e, claro, bicadas nos dedos.
Com as novas chegadas surgiram também oportunidade para praxes. Para a Maria, o Federico e a Joana era a primeira visita à ilha, e lá os conseguimos convencer que o reservatório de água salgada tinha de ser enchido a força de braços, alombando baldes cheio de água do mar até ao reservatório localizado sobre a casa. Cada um transportou um balde pesadíssimo cheio de água antes de lhes ser revelada a existência de uma bomba de água para esse efeito. Praxe!

segunda-feira, setembro 17, 2012

Postais das Selvagens


23 – Histórias alegres, histórias tristes

Cria de alma-negra junto à marca do seu ninho, neste caso o ninho B18.

Como já foi antes referido, os ninhos de alma-negra em estudo eram visitados diariamente. Numa primeira fase, o objectivo era saber se os ovos chegavam ao seu termo e conhecer a data da eclosão em cada ninho. Nascidas as crias, apenas uma em cada ninho como é normal nas aves marinhas, o trabalho tornava-se mais intenso. A cada dia os ninhos eram visitados, continuando a verificar se os ovos mais retardatários já tinham eclodido, anotando os ninhos em que a incubação tinha falhado, e nos ninhos com crias havia que pesar as crias. Todas as crias eram pesadas diariamente para conhecer os padrões de variação do peso, através dos quais é possível reconhecer os padrões de vinda ao ninho dos adultos e ter uma noção da quantidade ou qualidade do alimento trazido.
Algumas crias pouco variavam de peso de um dia para o seguinte, tendo provavelmente recebido uma refeição parca na noite anterior. Outras, coitadas, diminuíam de peso, sinal de que não tinham sido alimentadas e situação que, caso se repita vários dias seguidos, pode resultar na morte das crias. Felizmente, o mais habitual era detectar um saudável aumento do peso que em alguns casos podia ser de mais de 10 g num só dia, o que em pequenas criaturas que pesam à nascença entre 15 e 20 g é obra! Claro que depressa se desenhou nas nossas mentes um pequeno campeonato da engorda, em cada dia queríamos saber quem era a cria mais pesada da colónia, o verdadeiro peso-pesado.
Claro que, como já insinuei em cima e está patente no título, nem tudo corre sobre rodas para as almas-negras. Até ao dia em que escrevi estas linhas nenhuma cria tinha morrido por falta de alimento, mas tivemos já duas baixas por predação. Num caso, particularmente tétrico, encontramos a cria ainda meia-viva, a ser comida viva por lagartixas sem que o adulto, que se encontrava no ninho, fizesse alguma coisa para o evitar. Dizem-me os meus colegas que estas situações acontecem apenas no primeiro dia de vida das crias, ou porque os fluídos do ovo recém-eclodido atraem as lagartixas, ou porque o recém-nascido ainda molhado do nascimento não tem a pele suficientemente dura, ou a penugem suficientemente farta, para evitar o ataque das lagartixas. Pode também ter que ver com a ausência dos adultos, que é incomum logo após o nascimento, ou como neste caso a incapacidade de alguns adultos menos experientes para defender a cria das lagartixas. No caso das cagarras, sabe-se que cerca de 5% das crias que nascem têm este fim algo trágico, mas a verdade é que as lagartixas são omnipresente por toda a ilha, e em números absurdos, pelo que acaba por ser surpreendente estes acidentes de percurso não acontecerem mais vezes. A outra vítima de predação foi deixada sozinha no ninho logo no dia do seu nascimento, o que geralmente não augura nada de bom, tendo nós encontrado o ninho vazio no dia seguinte. Neste caso suspeitamos das gaivotas, que se sabe comerem almas-negras, tanto crias como adultos, e são os suspeitos do costume nestes casos.
Amanhã voltaremos à carga, para pesar mais crias e dar as boas-vindas às próximas a nascer, sendo que dos 88 ninhos em estudo já nasceram por agora mais de metade.

sábado, setembro 15, 2012

Postais das Selvagens


22 – Primeiras necessidades

Os painéis solares da casa da reserva na Selvagem Grande.

As rotinas diárias facilmente fazem esquecer os aspectos básicos do dia-a-dia. A nossa vida não é possível sem a ingestão de água e também o nosso bem-estar requer disponibilidade de água para fins sanitários e energia.
Estando no ponto mais meridional de Portugal, já muitas centenas de quilómetros mais próximos do equador do que o nosso cantinho na extremidade da Europa, o recurso à energia solar torna-se ainda mais óbvio. A casa da reserva tem um conjunto de painéis solares, num total de vinte e quatro, que garantem todas as necessidades de energia eléctrica durante os meses mais solarengos do ano. Existe também um gerador a gasóleo para quaisquer eventualidade, mas raramente foi usado durante o tempo que passei na ilha. Esta energia solar, absolutamente limpa de impactos para o nosso planeta, garantia as necessidades de refrigeração, de iluminação e outros fins domésticos como o funcionamento da televisão ou o carregamento de computadores, telefones e máquina fotográficas.
A ausência de água potável é o principal motivo pelo qual as Selvagens se mantiveram selvagens. Ocorreram algumas tentativas de colonização no passado, mas todas elas esbarraram contra a limitação da falta de água. A chuva por aqui é pouca e geralmente concentrada nos meses de inverno e a constituição geológica a ilha é pouco favorável ao armazenamento natural de água no subsolo. Foi construída na ilha uma cisterna, com capacidade para uns bons milhares de litros, que armazena água das chuvas. Além desta existem dois outros tipos de água: água potável trazida em bidons em cada rendição e, claro, a água do mar. A água do mar é usada para encher os autoclismos das sanitas, para lavar louça e para outros fins em que se pode abdicar da água doce, sendo bombeada do mar por uma bomba e armazenada numa pequena cisterna de mil litros sobre a casa. A água doce da cisterna é usada para a higiene, para banhos e afins, sendo que os banhos principais são no mar, bastando depois um curto duche para remover o sal. Finalmente, a água potável trazida em cada rendição é usada para beber e para cozinhar, uma vez que a água da cisterna tem muitas impurezas e pode não ser potável.
Para aquecer água é usado gás, proveniente de uma botija trazida da Madeira em cada rendição, mas foram muito poucas as vezes que foi necessário recorrer a esta energia menos limpa, fruto de a água chegar até nós já aquecida pelo sol que massaja as cisternas com os seus raios quentes.

sexta-feira, setembro 14, 2012

Postais das Selvagens


21 – Petiscos Selvagens

Cá estou eu no processo de preparar um arroz de polvo.

Continuando no mesmo tema, as refeições, à que dizer que se come muito bem na Selvagem Grande. Fosse obra minha, da minha colega Maria ou, sobretudo, do vigilante Jaques, os almoços e jantares eram sempre pontos altos de cada dia e deixavam sempre o estômago e as papilas gustativas bem aconchegados.
Já falei dos gaiados frescos que nos foram oferecidos pelos pescadores, peixes deliciosos da família do atum que foram sempre deliciosos, quer fritos, quer grelhados, quer assados que em escabeche. Lembro-me também de um deliciosos bacalhau à Gomes Sá feito pelo Jaques e de deliciosas saladas e massas de atum e carapaus com milho frito. Quanto ao peixe-espada, elemento essencial da cozinha madeirense, foram duas ou três as refeições em que reinou, sempre no forno com batatas e vegetais. Resta-me referir um arroz de polvo, da minha autoria, que não ficou mesmo nada mau. A secção do peixe ficou assim muito bem representada.
Da carne, passando pelas costeletas e bifes, o ponto alto foram sem duvida as monumentais feijoadas com que o Jaques nos brindou. Foram feijoadas ricas, abundantes de feijão, de tomate, de cenoura e de couve, com doses generosas de chouriço e deliciosos pedaços de porco e de frango, numa mistura de sabores que ficava ainda melhor na refeição seguinte, pois as feijoadas foram sempre preparadas em quantidade suficiente para pelo menos duas refeições. Devo dizer que as doses na Selvagem têm de ser ponderadas com o efeito da maresia e do trabalho de campo, sendo substancialmente maiores que doses normais. Acabados de subir e descer os carreiros íngremes até ao planalto e temperados pelo eterno aroma da maresia oceânica, atacávamos todas as refeições como se fossem a última e não poucas vezes era necessário recorrer à siesta para digerir o almoço. As espetadas, também elas tipicamente Madeirenses, e o entrecosto, ambos grelhados na brasa foram outras das iguarias provadas e largamente apreciadas. Falando de comida, não posso deixar de referir o pão fresco, cozido no forno a lenha por trás da casa, uma delícia!
As sobremesas foram geralmente de fruta, que tem de ser devidamente valorizada neste sítio remoto onde a fruta só chega de três em três semanas e também as saladas, em que os tomates selvagens da ilha eram presença constante, garantiam a dose recomendada de vitaminas. Ainda assim lembro-me de um bolo de banana, feito exactamente para aproveitar algumas bananas que não sobreviveram à dureza da estadia, e um doce de bolacha com café, natas e leite condensado, no fundo o clássico "doce da casa" que abunda por aí pelas casas de pasto do nosso país.
Falta-me referir que as refeições foram quase sempre regadas com vinho tinto e que no capítulo do álcool foram rainhas as belas ponchas que o Jaques nos preparou. Para quem não conhece, a poncha é uma bebida da Madeira, feita com aguardente de cana, mel e sumo de frutas, habitualmente laranja ou limão. Não há nada como uma bela poncha para aquecer o corpo e o espírito.

quinta-feira, setembro 13, 2012

Postais das Selvagens


20 – Estranhos convivas


Já falei antes das lagartixas que abundam na Selvagem Grande. Estes pequenos répteis estão por todo o lado, e são clientes habituais da comida da Selvagem, a cadela da ilha. Longe de temerem as pessoas, estas lagartixas vêm bastante perto e não é incomum ver dezenas delas a apanhar banhos de sol na varanda da casa da reserva. É quase impossível não ter vontade de interagir um pouco mais com elas.
Primeiro colocávamos-lhes dificuldades, exercícios para puxar pelas suas pequenas mentes. Em vez de colocar o prato de comida da Selvagem no chão, colocava-mo-lo sobre um frasco de vidro. Incapazes de trepar pelo vidro, as lagartixas juntavam-se às dezenas a procurar forma de chegar à comida. Algumas conseguiam mesmo saltar do chão até ao prato, uma vintena de centímetros de salto que são um feito verdadeiramente olímpico para tão pequenas patas. Geralmente colocávamos este aparato, prato e frasco, a cerca de um ou dois palmos do muro da varanda, para ver se elas conseguiam saltar de cima para o prato... não era fácil, mas algumas acabavam sempre por conseguir. Outro exercício consistia em por o prato mais longe do muro, mas colocar uma vassoura sobre o muro, com o cabo para o lado do prato, de forma a ser possível chegar a cima do prato trepando o cabo da vassoura, bastando depois deixarem-se cair. Também este exercício acabou eventualmente por ser superado.
Por vezes, à refeição, entretinha-mo-nos a atirar pequenos pedaços de comida para o canto mais distante da varanda, onde as lagartixas rapidamente se juntavam às dezenas. Cada pedaço de massa, atum ou carne resultava numa profusão de corpos enrodilhados, caudas e patas misturadas numa massa de lagartixas a disputar cada dentada de comida. Eventualmente, algumas conseguiam fugir com pequenos pedaços, sendo de pronto seguidas por muitas outras. Para complicar ainda mais este cenário, por vezes juntavam-se também os corre-caminhos, pequenos passaritos da ilha que se imiscuíam entre as lagartixas para fugir também com pedacinhos de comida no bico.
Enfim, as refeições na Selvagem grande eram sempre uma animação, e um petisco apreciado por animais tão diferentes como os humanos, uma cadela, pequenos pássaros e dezenas e dezenas de lagartixas. Por vezes lembrava-me das pessoas que têm fobia a répteis, como o senhor que ficou famoso na televisão aos gritos com uma iguana na cabeça. Essas pessoas morreriam de certo de ataque cardíaco ao fim de umas horas na Selvagem Grande!

quarta-feira, setembro 12, 2012

Postais das Selvagens


19 – Pios pela manhã

Cria de alma-negra com poucos dias de vida.

Como tinha já falado antes, uma das nossas principais tarefas na ilha era o seguimentos dos ninhos de alma-negra, com vista a conhecer melhor a biologia reprodutiva da espécie. Inicialmente visitávamos os ninhos para confirmar se a ave estava a incubar o ovo e mais tarde deveríamos pesar e medir diariamente as crias para avaliar o seu desenvolvimento. Claro que entre estas duas fases fica o momento mágico da eclosão, o nascimento de uma nova ave.
Nos primeiros dias a questão era saber se os ninhos continuavam activos ou se se perdiam por algum motivo, sendo que havia sempre algum desapontamento quando encontrávamos um ninho vazio ou um ovo abandonado, apesar de ser natural que nem todos os ovos cheguem ao seu termo, quer por motivos externos como internos. Depois de cerca de uma semana nesta rotina, começaram a surgir os primeiros sinais de que os nascimentos estavam para breve. Num dia notamos as primeiras rachas num ovo, no dia seguinte começamos a ouvir alguns ovos a piar, um fenómenos curiosíssimo que se observa em diversas aves, quando as crias ainda no ovo começam já a piar e o seu som é claramente audível no exterior. Subitamente o ovo deixa de parecer um objecto inerte para nos relembrar que é o berço de uma nova vida.
No dia seguinte as almas-negras começaram a eclodir. Isso não acontece em todos os ninhos em simultâneo, muito pelo contrário. No primeiro dia nasceram quatro, nos dias seguintes mais e mais novas aves, todas elas incrivelmente cómicas e fofinhas na mais perfeita acessão deste adjectivo. Imaginem uma daquelas bolas para libertar o stress, eriçadas com imensos bicos moles de borracha que massajam a nossa mão ao serem apertados. Agora substituam os bicos de borracha por plumas suaves de cor escura e acrescentem num dos lados um pequenito bico preto. Têm uma cria de alma-negra, só convém é não as apertar como as bolas de libertar o stress!
Nos primeiros dias as pequenas bolas de plumas são aquecidas pelo pais, que lhes garantem o calor e a protecção necessários, mas rapidamente a sua fome voraz obriga ambos os pais a passarem muito tempo no mar a pescar e as crias começam a ficar sozinhas em casa, é então que as começamos a pesar, e a medir as suas diminutas asas ainda desprovidas de penas.

terça-feira, setembro 11, 2012

Postais das Selvagens


18 – Encontros no fundo do mar

Cardume de barracudas a nadar eternos círculos na Baía das Cagarras.

Já falei antes das muitas tardes passadas a nadar com os inúmeros peixes que abundam na Enseada das Cagarras. Na verdade, tornou-se uma actividade diária, ao final da manhã depois de voltar do planalto, ou ao fim da tarde antes do jantar. Ao fim de alguns dias, algumas espécies, devido à sua abundância e frequência, tornaram-se parte da paisagem. Não quer isto dizer que deixei de gostar de os ver e de nadar junto a eles, mas comecei a coleccionar momentos mais especiais, observações mais raras, delícias para os olhos gulosos de cor e movimento.
Ao longo destas semanas de mergulhos diários na Baía das Cagarras, o meu peixe favorito é sem dúvida o peixe-cão. São peixes grandes, com mais de meio metro de comprimento e cores garridas, base vermelha com laivos amarelos e esverdeados. Geralmente surgem sempre de forma inesperada, a nadar calmamente junto ao fundo. Uma vez estava a nadar junto a umas rochas, numa zona pouco profunda e um peixe-cão não teve alternativa senão passar a meio metro de mim, foi extraordinário.
Depois haviam as espécies menos comuns. Um dia mergulhei até ao fundo para ver um peixe-cão e saiu de entre as rochas um vaso, um peixe relativamente grande, às manchas vermelhas e prateadas e com uns olhos enormes. Outra vez atravessa a zona de água mais profundas para chegar de uma rocha para outra e saiu-me ao caminho um charoteiro, um peixe grande e prateado que nadava a grande velocidade, indiferente à minha presença. As moreias passam o tempo escondidas nas suas tocas, só raramente se deixam ver. No dia em que os pescadores nos deram o gaiado, os restos da amanha dos gaiados geraram um grande frenesim entre os peixes. Enquanto nadava entre as pedras vi finalmente uma moreia, a espécie castanha-escura conhecida como moreão, a sair da toca para abocanhar um pedaço de gaiado e fugir com ele para o seu buraco escuro. Os afonsinhos são pequenos peixes de cor alaranjada, que até agora só vi uma única vez. Estavam junto ao fundo e encontrei-os enquanto seguia um peixe-cão. Surgiram por entre umas pedras e logo desapareceram e por mais que gastasse o meu fôlego a mergulhar à sua procura não os voltei a ver.
Outro grande atractivo eram os cardumes. Uma vez dei por mim entre um cardume de cerca de duzentos facaios, que nadam em meu redor exibindo as suas barbatanas bicolores, outras vezes encontrava cardumes de pequenas salemas, sempre inquietas a nadar rapidamente num sem fim de riscas amarelas em corpos prateados. Nas zonas mais protegidas da baía é habitual encontrar cardumes de barracudas, que nadam geralmente a meia água, permitindo que nós possamos boiar sobre elas enquanto nadam em eternos círculos ou espirais. Deve se assim que se sentem os pássaros a olhar de cima para nós. Finalmente, lembro-me de uma tarde em que nadava numa zona com muitas castanhetas e algo na limpidez da água e no ângulo com que os raios do sol entravam na água fez com que estes peixes, geralmente castanhos com alguns laivos de azul profundo, parecessem completamente liláses, como flores a nadar entre as rochas da baía.
Estar nesta ilha, poder ver estas maravilhas aquáticas e ter perfeita noção da sorte que tenho por ter acesso a este local é de facto algo de único.

segunda-feira, setembro 10, 2012

Postais das Selvagens


17 – Gaiado para o jantar

Os magníficos gaiados que os pescadores nos ofereceram.

Ainda não tínhamos sequer chegado às Selvagens, ainda a bordo do patrulha, e já o Jaques me dizia que era bom era se aparecesse um barco de pesca nas ilhas. Ele conhece a maioria dos mestres que pescam nestas águas, fruto dos muitos anos de Selvagens e da vida na Madeira, que qual aldeia grande permite que toda a gente se conheça. Dizia-me ele que se um barco de pesca nos visitasse era garantido algum peixe fresco para comermos, provavelmente algum gaiado, ou atum-bonito, habitualmente pescado nas águas em redor da Selvagem Grande.
Faço aqui um à parte para explicar que actualmente não é possível pescar nas ilhas Selvagens devido à ocorrência de algas tóxicas, do tipo que pode causar marés-vermelhas, e que ao serem consumidas pelos peixes entram na cadeia trófica tornando estes peixes um risco para a saúde. Parece difícil de acreditar que tal coisa possa acontecer aqui, nestas águas límpidas e paradisíacas, onde um mergulho é sempre acompanhado de dezenas e dezenas de peixes de várias espécies, mas são estas as consequências dos desequilíbrios que a humanidade tem causado aos ecossistemas marinhos. Felizmente, os gaiados e outros peixes de maior porte só passam pela região durante as suas migrações, não ficando tempo suficiente perto das ilhas para ficarem contaminados, pelo que é seguro come-los, mas custa mergulhar entre sargos, garoupas e salemas de belo tamanho e não poder pescar um peixinho de vez em quando para comer.
Ao fim de quase duas semanas na ilha, finalmente chegou o momento tão ansiado pelo Jaques. Logo pela manhã ele disse que ouvia um motor de barco ao longo, afirmação que me custou muito verificar, por inépcia auditiva minha ou por me faltar a experiência de quem há mais de trinta anos ouve barcos aproximarem-se vindos do mar. Algum tempo depois, enquanto subíamos para o planalto vimos o barco ao longe, e era sem duvida um barco de pesca. Claro que quando voltamos a descer já o barco estava ancorado perto da ilha, já o Jaques tinha falado com o mestre via radio e tinha o bote pronto a partir para ir buscar um peixinho. Uns dez minutos depois voltava ele de sorriso aberto, com uma caixa cheia de gaiados. Eram onze ao todo, acabados de pescar, a cheirar a mar e maresia e ainda com os tons cinzentos e azulados que os animam em vida. Parecem pequenos atuns, e de facto são-o, com os corpos fusiformes de quem nada a alta velocidade como forma de vida, com barbatanas aguçadas para melhor fender o mar azul. O Jaques prontificou-se a amanhar o peixe e esteve entretido nessa actividade algo sanguinolenta durante uma boa hora ou duas. Voltou finalmente da beira-mar com o peixe amanhado e partido em postas, e depois de dividido em porções generosas, deu para nove refeições fartas, tendo ficado uma delas pronta para ser cozinhada já no próximo jantar. E escrevi eu estas palavras de estômago preparado, pois o peixe está ali na cozinha, à espera, e só pode ser tão bom quanto a fama que o Jaques lhe tem rendido.

domingo, setembro 09, 2012

Postais das Selvagens


16 – Elas sopram!

O maravilhoso mar em redor das Selvagens, que é por vezes visitado por
cetáceos.

Penso que a maioria das pessoas concordará comigo se disser que os seres mais majestosos que existem neste planeta são as baleias. Os mares do arquipélago da Madeira não são tão pródigos nestes animais tremendos como os Açores ou as Canárias, mas algumas espécies visitam frequentemente estes mares... e as Canárias estão mesmo aqui ao lado.
Eu nunca tinha visto uma baleia e ansiava já há algum tempo visitar os Açores e por lá fazer um passeio de barco para ver cachalotes ou outros cetáceos que o mar tivesse para me oferecer. Aqui, nas Selvagens, já me tinham dito que era possível ver baleias, mas nunca são muito frequentes. Mas fui mantendo o olho no mar na esperança de ver qualquer coisa. Um dia estava na varanda a fazer qualquer coisa, quando o Jaques me puxou o braço: "Olha, uma baleia!". Olhei, olhei e não vi nada, mas o Jaques confirmou que tinha visto um sopro ao longe e recomendou que eu continuasse a olhar naquela direcção, que ela acabaria por voltar à superfície. Depois de uns cinco minutos a olhar para o mar, sempre na esperança que cada onda encarneirada fosse um prodígio de músculo e pele a romper a superfície, lá acabei por ver um repuxo a saltar das águas... mais uns minutos e vi outro. Era difícil estimar o tamanho, porque a distância era muita, o animal estaria a mais de um quilómetro de terra certamente, mas a potente fonte que irrompia das ondas teria de certo vários metros de altura.
Foi tudo o que consegui ver do animal, do corpo nem um vislumbre, mas a distância era de facto muita. Mas vi-lhe a respiração, o sopro como chamavam antigamente os baleeiros e este foi de tal forma forte e evidente não me sobrou qualquer duvida que tinha avistado a minha primeira baleia. Nestas águas as mais comuns são o cachalote e a baleia-comum, ou poderia ser um zífio, uma espécie de golfinho de grandes dimensões, mas o tamanho do sopro sugeria um animal de grande porte. A tanta distância era difícil ter certezas, mas o sopro pareceu sair na diagonal, o que sugere um cachalote pois esse animal tem um só espiráculo do lado esquerdo da cabeça, tendo assim o sopro desviado da vertical, ao contrário das verdadeiras baleias que têm dois espiráculos no topo da cabeça e sopram na vertical. Não sei de que espécie era, nem tanto isso me interessa, só sei que foi a minha primeira baleia e não a vou esquecer.

sábado, setembro 08, 2012

Para quando a revolução?

 

Artigo 21.º da Constituição da República Portuguesa:

Direito de resistência
Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública.


Perante um governo que se limita a assaltar repetidamente os cidadãos, renunciando aos seus direitos e renegando as ideias e políticas que foram sufragadas em eleições, assim como ao respeito pela constituição do estado de direito, só resta aos patriotas uma solução: resolver o problema de forma rápida e eficaz!

Postais das Selvagens


15 – Pombo correio

A armadilha usada para capturar os pombos (junto à mesa) e pombos por
perto, nas rochas.

Apesar de ficar a 163 milhas náuticas da Madeira, ou seja duzentos e muitos quilómetros, por vezes aparecem na Selvagem Grande pombos domésticos de competição. As pobres aves devem ser largadas em competições na Madeira e devido aos ventos empurradas para o mar alto, acabando por ter a sorte de vir parar às Selvagens, de outra forma acabariam por morrer no mar alto.
Desabituado de ver pombos, depois de algum tempo nas ilhas, demoro sempre alguns segundos a localizar os pombos como estando mesmo aqui e não numa qualquer praça de Lisboa. Depois de um dia ou dois completamente perdidos, os pombos acabam por perceber onde na ilha se encontram as pessoas e começam a rondar a casa da reserva na esperança de encontra comida e, sobretudo, água doce. Jaques, o vigilante, tenta sempre capturar os pombos, para os levar de volta à Madeira e aos seus donos, que por esta altura possivelmente pensam já que os seus animais estão irreversivelmente perdidos. Começamos por colocar alguma água e milho perto de casa, para os ir habituando, e os pombos começam a vir cada vez mais perto. Eventualmente, montamos a típica armadilha para pássaros: uma caixa virada ao contrário, com os dos lados levantado por uma pedaço de madeira que está amarrado a um fio comprido. Sob a caixa colocamos uma mão cheia de milho e esperamos que eles caíam na nossa armadilha. Eles aproximam-se cautelosamente, vão bicando o milho mais afastado da caixa, mas acabam por não resistir ao monte de deliciosas sementes que os espera sob a caixa, altura em que puxamos a corda e apanhamos mais um pombo.
Só de uma vez apareceram na ilha oito pombos, que fomos apanhando um por um. Infelizmente um deles morreu, possivelmente debilitado pela fome, sede e pela dureza da viagem até à ilha, mas os outros ganharam uma verdadeira lotaria, conseguiram sobreviver ao mar alto e encontrar água doce e comida fácil de que viveram por uns dias até voltarem a casa no próximo barco. Não duvido que o dono dos pombos ficou igualmente satisfeito com o nosso novo hobby de caça ao pombo!

quinta-feira, setembro 06, 2012

Postais das Selvagens


14 - Tem ovo?

Ninho de alma-negra identificado por uma placa cor-de-laranja
numerada. A diminuta entrada não é de todo óbvia nesta fotografia.

A partir da primeira semana de Julho começamos a vistoriar diariamente os ninhos das almas-negras. As aves estão nesta altura no final da incubação e queríamos saber exactamente a data de eclosão das crias pelo que era necessário visitar todos os dias os ninhos, por um lado para saber se já tinham eclodido e por outro lado para confirmar que a postura não se tinha perdido por predação ou por abandono dos pais.
As almas-negras são lindíssimas, com a sua plumagem escura, quase preta, e o bico escuro e aguçado. Felizmente para os nossos dedos, este bico, apesar de aguçado, é muito mais pequeno do que o das cagarras, fruto da alma-negra ser uma ave substancialmente mais pequena. Digo felizmente porque para determinar se a ave estava ainda a incubar ou se a cria já tinha nascido, torna-se necessário por a mão dentro do ninho, mas ao contrário do que acontecia com as cagarras, aqui não podemos usar luvas pois de outra forma não teríamos a sensibilidade necessária para sentir o pequeno ovo sob a ave.
Convém explicar que os ninhos das almas-negras são orifícios entre pedras, com uma entrada estreita que mal dá para colocar a nossa mão. Requer um pouco de coragem enfiar a mão num buraco escuro, sabendo à partida que lá dentro está um pequeno animal a incubar, que para defender a prole vai recorrer à sua principal arma, o bico aguçado de ponta retorcida com que pescam peixes no mar alto. Algumas aves são mais calmas e deixam-nos colocar os dedos sobre elas para sentir o ovo sem recorrerem à bicada, ficando simplesmente a olhar para nós com ar reprovador. Outras, mais mal-dispostas, desatam a bicar os nossos dedos para deixar claro que não admitem aquele tipo de intromissão indevida nas suas vidas. Ao fim de algumas dezenas de ninhos, inevitavelmente, as nossas mãos pingam já algum sangue em dois ou três sítios diferentes.
Como a necessidade aguça o engenho, e a dor ainda o aguça mais, eventualmente comecei a usar um pequeno pauzinho comprido que introduzia cuidadosamente no ninho para desviar suavemente a ave de forma a conseguir avistar o ovo. Claro que isto só era possível nos ninhos mais abertos, ou nos casos em que era possível desviar algumas pedritas para espreitar para o interior, nos restantes casos era mesmo inevitável enfiar a mão lá dentro, aguentar as bicadas furiosas e tentar não imaginar cenas de filmes em que alguém enfia a mão num buraco escuro sem saber que lá dentro o espera uma enorme aranha, uma serpente venenosa ou uma profusão de vários vermes, insectos e outros animais rastejantes de índole desagradável, como acontecia num dos filmes do Indiana Jones.

quarta-feira, setembro 05, 2012

Postais das Selvagens


13 - Invasão francesa

Jantar com os visitantes franceses.

Enquanto caminhamos pela ilha o mar é sempre o elemento dominador da paisagem. Lá está ele a sul, a norte, a este e a oeste. Pode parecer estranho estar a reiterar este facto óbvio da paisagem que circunda qualquer ilha, mas para um habitante do continente esta é uma experiência nova. O azul do mar é apenas quebrado pelas silhuetas esbatidas da Selvagem Pequena e do Ilhéu de Fora, na direcção sudoeste. A outra quebra da monotonia do horizonte eram os ocasionais barcos que passavam ao largo da ilha. Mais longe via-se por vezes um cargueiro, na sua rota calma em direcção à Europa ou a mares mais distantes, mais perto vinha por vezes algum veleiro que vinha fazer escala na Selvagem Grande durante a viagem para as Canárias, que podiam ser destino ou apenas a escala seguinte.
Nas primeiras semanas na ilha vi passarem por lá velejadores russos, austríacos, belgas e franceses, mas foram estes últimos que mais saudades deixaram. O barco, chamado Filou, era tripulado por estudantes de medicina franceses, que decidiram adiar por um ano o seu curso e velejar pelo mundo. Vindos da Europa, vieram passar dois dias nas Selvagens, seguindo depois para as Canárias, Cabo Verde, Brasil e Argentina, estando ainda por decidir se arriscariam ou não dobrar o Cabo Horn. Extremamente simpáticos, foram nossos companheiros de jantares e noitadas de cartas enquanto estiveram na ilha. Eles eram sete, nós apenas três, durante uns dias foi uma autentica invasão francesa na Selvagem Grande.
Estes franceses, tal como os outros visitantes e tal como eu próprio fiz mais tarde, aproveitaram a estadia na ilha para darem uso ao marco de correio mais meridional de Portugal. É verdade, a Selvagem Grande tem um marco de correio e funciona mesmo como posto dos correios, com selos, carimbos próprios e um típico marco de correio vermelho. Claro que as cartas e postais têm de esperar calmamente pela próxima visita do patrulha da marinha, mas a seu tempo chegarão ao seu destino como em qualquer outro marco dos correios.

terça-feira, setembro 04, 2012

Postais das Selvagens

12 - Selvagem

A Selvagem a vigiar o mar sobre a Enseada das Cagarras.

Nos filmes do oeste, entre vaqueiros e índios, era habitual surgir a expressão "cidade de um só cavalo", como termo pejorativo para pequenas cidades perdidas no meio do deserto, aquelas que nos filmes os índios atacavam e os vaqueiros salvavam. Pois a Selvagem Grande é um ilha de um só cão. Esse cão, aliás uma cadela, é a Selvagem. A homónima da ilha é uma cadelinha de pelo malhado preto e branco, sem nenhum raça óbvia, que dá as boas-vindas aos visitantes da outra Selvagem, a ilha, desde 2005. A Selvagem canina veio para a ilha em 2005, ainda cachorra, e desde aí viveu sempre na ilha, apenas com uma curta ida ao Funchal por motivos médicos no ano passado. Nota-se que ela não sabe ser cão. Talvez por ter sempre vivido entre pessoas, quando mostra os dentes está-se a rir, como uma pessoa, não pretendendo ameaçar ninguém com o vislumbre dos seus caninos, e quando não está a comer ou a pedinchar bolachas e queijo, ela gosta mesmo é de se deitar ao sol, a mirar o mar, pronta a avisar com alguns latidos a chegada de algum barco. Na verdade a Selvagem não é um cão de guarda muito bom, não é incomum ser ela a última a notar a chegada de alguma embarcação e nem sequer sabe guardar a sua comida, que geralmente acaba comida pelas lagartixas que se juntam às dezenas para roubar a ração ou outra comida directamente do prato da Selvagem.
Quando subimos ao planalto, para visitar os ninhos das aves, a Selvagem vem connosco, subindo com invejável facilidade a subida que a nós tanto custa. Que maravilha ter quatro patas e menos cinquenta ou sessenta quilos de peso! Não sei se ela sempre se portou bem junto das aves, ou se aprendeu ainda pequena o quanto pode doer uma bicada de uma cagarra mal disposta, mas enquanto trabalhamos a Selvagem limita-se a descansar na sombra de algum arbusto, sempre de olho na possibilidade de ser hora de voltar a casa que é sem dúvida a parte da ilha que ela mais gosta.
A Selvagem tem medo do mar, o que é uma fobia algo desagradável para quem vive numa ilha de pequenas dimensões. Ainda pequena, a Selvagem foi apanhada por uma onda, tendo apanhado um grande susto do qual só saiu com vida por sorte e desde aí mantém sempre uma distância confortável do mar, quer este esteja calmo ou borrascoso. Pode ter medo do mar, ser a última a ver os barcos que chegam à ilha, e não conseguir defender a sua comida das lagartixas, mas é impossível não nos apaixonar-mos pelo focinho felpudo e pelos olhos meigos e castanhos da principal habitante de quatro patas da Selvagem Grande.

Postais das Selvagens


11 - Endémicos ou não

A osga Tarentola boettgeri (fotografia do meu colega Cristóbal Pérez)

Outra das curiosidades da ilha são as osgas. A osga que aqui encontramos, da espécie Tarentola boettgeri é um endemismo da macaronésia, região que inclui os arquipélagos das Canárias, Madeira e Açores. Na verdade a sua distribuição é muito mais restrita que isso, esta espécie existe apenas nas Selvagens e na ilha canária de El Hierro. Ao contrário das lagartixas, as osgas são muito mais discretas. Geralmente passam o dia escondidas debaixo das pedras, só saindo à noite, mas se começarmos a virar pedras em algumas partes da ilha rapidamente damos com um destes patuscos animais, de corpo escamoso escuro e grandes olhos amarelados. Como todas as osgas, têm os dedos enrugados de forma a funcionarem como ventosas para melhor treparem pedras e muros. As osgas não são os únicos animais endémicos das Selvagens, contando-se nesta lista também o escaravelho Deuchalion oceanicum e a borboleta Agrotis selvagensis. Não endémico, mas muito mais conspícuo do que estes animais, falta-me aqui falar do corre-caminhos, uma pequena ave da família das petinhas e alvéolas que ocorre nas ilhas e é facilmente avistada a esvoaçar e saltitar sobre as ilhas. Os corre-caminhos são bastante confiantes e não é difícil atraí-los com pedacinhos de pão ou de arroz, ou até mesmo uns restinhos de salsichas ou de atum da última refeição.

segunda-feira, setembro 03, 2012

Postais das Selvagens


10 - O planalto à noite

À noite, no planalto, somos bombardeados por cagarras e outras aves.

Sobre as noites na Selvagem Grande, já referi que eram embaladas pela ondulação e despertadas pela animação das cagarras, mas algumas noites eram também dias de trabalho. Como a grande maioria das cagarras só vem a terra de noite, a probabilidade de encontrar indivíduos não reprodutores é bem maior de noite. Amarinhávamos a subida à luz da lua, ou em noites mais escuras à luz da lanterna e com algum cuidado chegávamos ao planalto sem percalços. Numa noite de grande actividade o planalto à noite é muito, muito diferente do dia. Centenas e centenas de cagarras voam, rastejam e saltitam por todo o lado, estamos constantemente a ser bombardeados por carragas, almas-negras e roquinhos que passam a rasar as nossas cabeças, por vezes batendo mesmo ao de leve no nosso corpo. Para tentar capturar os indivíduos não reprodutores, caminhamos ao longo dos muros, tal como fazemos de dia, mas com lanterna e camaroeiro em riste, prontos a caçar as cagarras mais incautas. Tal como em tantas coisas, esta actividade tem um truque: caminhar a favor do vento, de forma a dificultar a descolagem das cagarras que precisam de apanhar vento contra para subir rapidamente. Mas não basta apanhar qualquer cagarra, entre as centenas e centenas que por ali andam temos de encontrar as que têm uma anilha cor-de-laranja numa pata e um aparelho de seguimento na outra pata. Apanhar uma destas cagarras numa noite de trabalho já é um excelente resultado. Estas aves são excepcionalmente fiéis ao local onde nascem e muitas vezes os animais não-reprodutores são jovens que nasceram à quatro ou cinco anos e estão agora a voltar pela primeira vez à colónia, onde se irão começar a reproduzir nos anos seguintes. Incrivelmente, elas são geralmente apanhadas a poucos metros do ninho onde nasceram.

domingo, setembro 02, 2012

Postais das Selvagens


9 - De noite ou debaixo de água

A maravilhosa água da Enseada das Cagarras.

Nas selvagens nem toda a gente consegue dormir bem. As cagarras, que lá existem às dezenas de milhares, são muito ruidosas, sobretudo ao anoitecer e ao amanhecer. Quer isso dizer que aqueles de sono mais leve frequentemente acordam por volta das cinco horas da manhã, altura em que as cagarras começam a sair para o mar para mais um dia de faina, fazendo questão de o anunciar ruidosamente, no seu zurrar coaxado repetido em milhares e milhares de bicos. O mar, no seu eterno duelo com as rochas, mantém também um burburinho constante, mas esse parece-me a mim mais embalo que despertador.
O mar é também um dos grandes entretens de quem faz estadias nas Selvagens. Não só agracia o olhar com o seu azul profundo e a eterna labuta das ondas, como nos oferece ali mesmo ao pé uma infinidade de cores e formas dos muitos peixes e invertebrados marinhos que abundam nas enseadas da Selvagem Grande. Geralmente era na Enseada das Cagarras, logo ali junto à casa da reserva, que eu passei horas e horas de óculos de mergulho e tubo de respiração postos, a nadar por entre as pedras a apreciar as vista submarinas, sentindo-me como que um pássaro a planar nos seus sobre os habitantes do mar. Por onde começar? Só quem já mergulhou em águas tão límpidas e pristinas como as das Selvagens podem imaginar a prodigiosa abundância de peixes. Desde as espécies nossas conhecidas do prato, como os sargos e as garoupas, aos vários cabozes, às tainhas, e a dezenas de outras espécies. Por todo o lado nadavam os coloridos peixes-verdes, e os bodiões, os machos mais cinzentos, as fêmeas vermelhas e amarelas. Um pouco mais longe das pedras encontramos cardumes de pequenas barracudas, de preguiçosas e de facaios, estes últimos muito engraçados com as suas barbatanas pretas e brancas. Mais junto ao fundo nadam as castanhetas, escuras com tons de azul quase florescente, e os porquinhos, pequenos peixes-balão de forma curiosa, cabeçudos e com uma lista clara lateral. Insistindo todos os dias, fui juntando novas espécies à minha lista, incluíndo a truta-verde, a salema, o lagarto-do-rolo, o peixe-cão, o vaso, o peixe-agulha, a boga, a dobrada e o rocaz e por vezes dava por mim no meio de enormes cardumes de minúsculos guelros. Lembro-me agora, que o assunto são os peixes e me sinto quase um novo padre António Vieira, que me esqueci de referir os peixes que pude ver a bordo do Cuanza, durante a viagem. Não foram muitos, mas a certo ponto avistamos um cardume de gaiados, pequenos atuns que no continente são mais conhecidos como bonitos, mas o mais engraçado foi mesmo o peixe-voador que vi saltar das águas junto ao barco e voar umas boas dezenas de metros até voltar a mergulhar nas ondas.

sábado, setembro 01, 2012

Postais das Selvagens


8 - A história das Selvagens

Colunas de basalto que evidenciam o vulcanismo
 submarino que originou a ilha da Selvagem Grande.

Voltados à base, na casa da reserva junto ao mar, dedicamos o nosso tempo a preparar a refeição, mais uma de tantas refeições deliciosas, comidas entre conversa amena e vistas deslumbrantes do oceano Atlântico. Não há nada como a maresia para abrir o apetite, e ninguém passou por lá fome durante a minha estadia, muito longe disso! Há noite, entrego o meu tempo à leitura de alguma da literatura disponível na ilha, nomeadamente uma publicação sobre as Selvagens, produto do trabalho dos técnicos do Parque Natural da Madeira. Aprendo então um pouco sobre a história e a pré-história destas ilhas únicas. As Selvagens são ilhas vulcânicas, resultantes da agitada vida interior do nosso planeta, são fruto do trabalho de antigos vulcões submarinos, pelo que nunca estiveram em contacto com o continente africano. Nos idos tempos do Miocénico, já lá vão uma bela mão cheia de milhões de anos, as ilhas estiveram submersas, devido à subida do nível do mar, tendo-se formado nessa altura as rochas calcárias que se podem encontrar em várias partes da ilha, resultado da lenta sedimentação de pequenos animais com concha nos mares primitivos. Depois de feito o trabalho geológico do planeta, coube ao homem descobrir as ilhas. Oficialmente as Selvagens foram descobertas pelo navegador português Diogo Gomes, em meados do século XV. No entanto, existem relatos prévios que provam que a existência destas ilhas era conhecida desde a antiguidade, tendo mesmo recebido os nomes de Heres e Antoloba pelos cartógrafos gregos. Numa carta redigida em 1345, e escrita por D. Afonso IV ao Papa Clemente VI era já narrada uma expedição portuguesa às Canárias em que era feita referência às Selvagens.
Depois de descobertas e re-descobertas, por ventura várias vezes, as Selvagens foram finalmente incorporadas na Ordem de Cristo, durante o reinado de D. Manuel, tido sido feitas concessões destas ilhas a fidalgos e guerreiros que se distinguiram por feitos de armas e de descobertas. A partir do século XVI passaram para as mãos de privados, tendo então passado de mão em mão, por herança, venda ou doação, até à segunda metade do século XX. As ilhas foram ocasionalmente alvo de tentativas de colonização, sempre falhadas devido à falta de água doce, e nelas foram introduzidas cabras e coelhos, a que se juntaram os ratos que ali chegaram clandestinamente. Durante séculos foram exploradas para recolha da urzela, um líquen que era utilizado para produzir uma tinta púrpura usada em tecidos e papel, assim como de barrela, plantas usadas para o fabrico de sabão. As ilhas tinham também bom rendimento da pesca e salga de peixe, da recolha de guano das aves marinhas para fertilizante, e da captura de cagarras jovens cuja carne era muito apreciada e as penas usados no fabrico de colchões. Em 1971 as ilhas tornaram-se propriedade do estado português, tornando-se na primeira Reserva Natural do país.