sexta-feira, novembro 16, 2012

Postais das Selvagens

33 – O Regresso

Uma última vista da Selvagem Grande, já a bordo do Schultz.

As seis semanas que passei na Selvagem Grande foram um período extremamente agradável, de que quase só recordo momentos felizes, calma e também sentido de dever feito. Passadas as seis semanas, com o trabalho levado a bom porto e as maravilhas da ilha quase todas descobertas, estava na hora de regressar à realidade.
Claro que haviam também saudades, e muitas. Saudades da família, e sobretudo da minha Ana que enquanto eu estava na Selvagem Grande ia incubando na barriga o nosso rebento, o pequenito João que deverá nascer em Outubro se tudo correr bem. Saudades também de casa, da "civilização" e do outro Portugal que está colado à Europa.
Desta vez, por incrível que pareça, a rendição correu sem percalços. O navio da marinha, o balizador N.R.P. Schultz Xavier chegou à ilha no dia previsto e a cansativa tarefa do transbordo de pessoas e mantimentos entre o navio e ilha correu dentro do previsto. Partimos da Selvagem Grande por volta das 16 horas, mas continuamos a ver a ilha no horizonte durante várias horas, à medida que o sol ia baixando para um fenomenal pôr-do-Sol do alto mar. O Schultz é um navio bem maior que o Cuanza com que cheguei à ilha, pelo que desta fez tive direito a um beliche para dormir. Tínhamos também preparado um farnel para a viagem, pelo que a viagem correu desta vez sem sobressaltos de qualquer tipo. Lembro-me apenas do tal pôr-do-Sol, das cagarras e almas-negras que patrulhavam as águas em nosso redor e de um grupo de golfinhos-malhados que a certo ponto se aproximaram muito do navio e o acompanharam durante alguns minutos na sua habitual folia de saltos e mergulhos.
Chegámos ao Funchal de madrugada, e aproveitámos ao máximo esse dia que seria o único na Madeira. Passeamos um pouco pela ilha e pelo Funchal e fomos experimentar melhor as ponchas, só para confirmar que as da Selvagem Grande eram realmente boas... claro! No dia seguinte o voo para Lisboa era logo pela manhã. Acabara a aventura nas Selvagens, mas pode ser que hajam mais capítulos em anos próximos.

terça-feira, novembro 06, 2012

Postais das Selvagens

32 – Jogos Olímpicos

Pode não ser prova olímpica, mas muito exercício fizemos a caminhar na ilha.

Com o trabalho dos últimos dias quase me esqueci de referir aquela que foi a principal ocupação a ocupar os tempos livres ao longo da segunda metade da segunda estadia: os Jogos Olímpicos. A olimpíada de Londres de 2012 decorreu durante a minha segunda estadia na Selvagem Grande e nós, os 6 ilhéus temporários, seguimos atentamente os feitos olímpicos dos nossos pares.
Do judo ao ping-pong, da natação ao remo, do atletismo à ginástica e dos desportos colectivos aos desportos mais radicais, tudo o que a RTP tinha para nos mostrar nós seguimos. Até podíamos não perceber muito de alguns desportos, mas ao fim de uns dias já sabíamos distinguir um ippon de um waza-ari no judo e já percebíamos até quem eram os melhores nas várias provas de ginástica.
A prestação dos atletas portugueses foi a habitual miséria, salvando-se a excelente prestação das equipas de remo. Dos outros, muitos poucos conseguiram sequer igualar os seus records pessoais, que penso ser o mínimo que se exige nuns jogos olímpicos, com a agravante de procurarem sempre um discurso segundo o qual a culpa dos seus fracassos não era deles mas da falta de apoio, da hora a que a prova tinha sido disputada ou certamente dos alinhamentos entre Júpiter e Saturno. Enfim, o portuguesismo no seu pior. Mas felizmente existiam milhares de outros atletas de outras nações que nos maravilharam com os seus feitos, quer fossem os mortais na barra fixa do ginasta holandês Epke Zonderland, as braçadas infernais de Michael Phelps e companhia na piscina olímpica, o passo de gazela de Usain Bolt nas provas de velocidade , ou as jogadas espectaculares das equipas de voleibol ou de basquetebol.
Foram muitas tardes bem passadas a discutir o mérito de um golpe de judo, a qualidade de uma cambalhota ou também, porque não, a beleza das jogadoras de voleibol dos países de leste. Claro que se houvesse uma medalha de ouro para a pesagem de crias de alma-negra, essa cairia para Portugal certamente.

domingo, novembro 04, 2012

Postais das Selvagens

31 – Noite sim, noite sim

Colocação do último geolocator numa alma-negra.

A última grande tarefa que me sobrava antes do final da estadia era a colocação dos geolocators, os pequenos aparelhos que recolhem informação sobre as rotas migratórias das aves. Como as almas-negras só vêm ao ninho durante a noite, este trabalho tinha de ser feito de noite, tendo ocupado a maior parte das noites da minha última semana na Selvagem Grande. Comecei esta tarefa a seis dias do final, pois interessava adiar a colocação dos aparelhos para o mais próximo possível do fim da estadia, mas esperava conseguir despachar a tarefa em duas ou três noites. Não foi assim.
A primeira noite rendeu apenas quatro aves capturadas e acopladas com um geolocator, o que sugeriu logo que não ia ser assim tão fácil. A segunda noite rendeu mais quatro, mantínhamos o ritmo da véspera, mas a terceira noite rendeu apenas três. Com um total de vinte aparelhos para colocar, as noites começavam a faltar, pelo que à quarta noite decidi levar mais longe o esforço de campo. Fiquei a noite toda no planalto, visitando os ninhos de hora a hora.
Foi uma noite longa. A primeira volta foi feita pela meia noite e trinta, na companhia da Maria e do Cristóbal, e encontramos três aves. Era um bom começo para a noite, mas continuavam a sobrar seis geolocators a colocar. Finda a primeira ronda, os meus colegas voltaram a casa, pois teriam trabalho para fazer de manhã e eu fiquei sozinho no planalto. A noite estava espectacular, com um luar que permitia caminhar sem luzes e sem grandes frios apesar do vento que se fazia sentir. Entre rondas descansava um pouco num pequeno barracão onde os vigilantes guardam material, na companhia de umas quantas osgas, e de hora a hora ia visitar os ninhos. As estrelas estavam lindíssimas, e foi uma experiência interessante passar uma noite sozinho num local tão deserto, mas a noitada, que se prolongou até ás sete hora da madrugada seguinte, só rendeu mais três aves. Apesar do esforço brutal, tinha ainda de capturar mais três aves nas duas derradeiras noites da estadia, mas antes tinha de recuperar o corpo da noitada... Infelizmente, depois dos trinta uma noite em claro tem o mesmo efeito que uma bebedeira daquelas de proporções épicas.
No dia seguinte fui-me arrastando, sem forças nos músculos e sem actividade no cérebro, tentando poupar energia para mais uma subida nocturna, e fazendo figas para que esta fosse a última subida nocturna ao planalto. Não me apetecia mesmo nada ter de subir na última noite, que será de arrumações e preparativos para a viagem, mas não depende de mim, depende das almas-negras e das suas vindas aos ninhos. Chegada a noite, com o corpo já mais acordado, subimos ao planalto. Apanhamos rapidamente dois indivíduos e parecia que íamos conseguir completar o trabalho nessa noite, mas a última anilha de plástico, necessária para fixar o geolocator à pata da ave, partiu-se e mais uma vez ficou trabalho para fazer para o dia seguinte. Para compensar este azar, o universo brindou-nos com um céu absolutamente fabuloso, pintalgado de infinitas estrelas, com a via láctea a rasgar o céu ao meio. Um céu como nunca viram aqueles que nunca puderam fugir à poluição luminosa do continente Europeu, absolutamente perfeito, a que se juntaram duas estrelas cadentes para compor o ramalhete.
No dia seguinte colocamos finalmente o último aparelho. Missão cumprida. Faltava agora fazer as arrumações e limpezas e esperar pela rendição.