sexta-feira, agosto 31, 2012

Postais das Selvagens


7 - Das cagarras

O biólogo e a cagarra.

Voltando ao ninho da cagarra, quando verificamos ser um indivíduo diferente, chega a altura de o retirar do ninho... Convém aqui explicar que as cagarras têm um bico forte e aguçado, recurvado na ponta como um anzol. É o resultado perfeito da evolução que seleccionou os bicos mais eficientes para apanhar peixe no alto mar. Esses bicos são igualmente eficazes a cortar pedaços de dedos dos mais incautos, pelo que convém calçar uma luva resistente antes de afundar o braço no ninho da cagarra. É exactamente pelo bico que convém agarrar a ave, puxando depois com algum cuidado, e para natural indignação do animal, até a termos fora do ninho. Algumas aves ficam sossegadas, aceitando com a sua filosofia natural o incómodo, mas outras bufam, zurram, esperneiam, enfim lutam com as suas armas possíveis para que as deixem em paz. Mais bicada menos bicada acabamos por encontrar uma posição confortável para ave e biólogo. Depois chega a altura de ler o número da anilha ou, caso ainda não tenha uma, anilhar a ave com uma anilha nova. Acabado este encontro imediato do terceiro grau, a ave é devolvida ao ninho, até porque os ninhos vazios são facilmente predados pelas gaivotas que chamariam ao ovo solitário um proverbial figo.
O mesmo processo repete-se junto ao vários ninhos, cerca de três centenas, que são alvo de monitorização. Algumas dezenas de ninhos de alma-negra são também alvo da mesma atenção, sendo que essa aves são mais pequenas e têm um bico proporcionalmente menos ameaçador. Outras actividades incluem retocar a pintura nos números dos ninhos e procurar indivíduos que têm acoplados aparelhos que registam a sua localização através da duração do dia ou do contacto com satélites de posicionamento global. Estes aparelhos extraordinário permitem conhecer, dia a dia, em alguns casos hora a hora ou mesmo minuto a minuto as viagens destas aves pelos oceanos. Muitas destas aves que aqui manuseamos passaram o inverno no Atlântico Sul, ao largo do Brasil ou da África do Sul ou, em alguns casos, dobraram mesmo o Cabo da Boa Esperança entrando no Índico até às costas de Moçambique e Madagáscar. Saberiam Vasco da Gama e Pedro Alvares Cabral que as suas viagens de descoberta eram já praticadas à séculos e milénios por estas aves, que nascidas na Selvagem Grande são tão portuguesas como os nossos famosos navegadores? Suspeitaria Camões que o seu Adamastor era já velho conhecido da cagarra?

quarta-feira, agosto 29, 2012

Postais das Selvagens


6 - Na Selvagem Grande também se trabalha

Ninho de cagarra com o número 43, e com a cagarra "escondida com o
rabo de fora". Fica o desafio de encontrar o bicho: onde está a cagarra?

Feito o reconhecimento da ilha, chega a altura a de começar a trabalhar. Os ninhos de cagarras e de almas-negras nos muros são seguidos cuidadosamente para determinar quem são os pais e qual o destino do ovo, e da eventual cria que lá vai nascer. Chegados à beira de um ninho, identificado por um número escrito a verde, amarelo, branco ou azul numa pedra próxima, temos de olhar para dentro do buraco e tentar perceber se a ave que lá se encontra é já conhecida ou não. A quando da primeira visita aos ninhos, os meus colegas pintalgaram as aves com marcadores verdes, pelo que se a ave tiver o peito ou a cauda esverdeada, trata-se de uma ave já conhecida naquele ninho. Se a ave mantiver a sua plumagem imaculada será um indivíduo novo, pelo que temos de o puxar para fora do ninho para o identificar, caso já tenha anilha, ou para o anilhar caso seja uma ave nova. Paro aqui um momento para ponderar um pouco este prodígio que é a anilhagem de aves. Ainda há não muito tempo, no século XVIII, o grande naturalista Lineu acreditava que as andorinhas passavam o inverno enterradas no fundo dos lagos e as lavercas dormiam o longo inverno setentrional debaixo das raízes das plantas. Eram já bem conhecidos os padrões de aparecimento e desaparecimento das aves, que chegavam na primavera e desapareciam no final do verão. Contudo, poucos, se é que alguns, suspeitavam que estas pequenas aves iam passar o inverno a centenas ou milhares de quilómetros de distância, na outra extremidade das suas rotas migratórias. Em Inglaterra acreditava-se que os gansos-de-faces-brancas nasciam dos percebes no outono, o resultado de uma imaginação prodigiosa e de uma suposta semelhança entre o bico das aves e a concha do animal marinho, uma metamorfose extraordinária que, no entanto, parecia mais credível aos vitorianos do que a ideia destas aves migrarem milhares de quilómetros para se reproduzirem em distantes fiordes e escarpas na Escandinávia, Islândia e Gronelândia. Foram os naturalistas escandinavos que primeiro pensaram em marcar aves com anilhas. Foi nos finais do século XIX e os europeus, depois de explorado o mundo, começavam já a suspeitar que as aves migravam para outras paragens distantes quando não estavam na Europa. Começaram a colocar anilhas metálicas com códigos de letras ou números que permitiam identificar a ave caso esta voltasse a ser capturada mais tarde. Em poucas décadas esta ideia permitiu ficar a conhecer a fundo as migrações de centenas e centenas de espécies, não só na Europa, mas também no resto do mundo, para onde a ideia foi exportada. Mas hoje em dia temos técnicas ainda mais avançadas, a que voltarei mais adiante.

segunda-feira, agosto 27, 2012

RIP: Neil Armstrong


""Don't tell me the sky is the limit, when there are footprints on the Moon" (Paul Brandt)

Até pode ter sido o resultado de uma perversa batalha de egos entre duas super-potências à procura de preponderância num mundo sob a ameaça de um holocausto nuclear, mas a chegada à Lua, os primeiros passos na lua e as palavras imortais de Neil Armstrong "That's one small step for man, a giant leap for mankind" marcaram um dos pontos mais altos do século vinte e um marco que será certamente celebrado por gerações futuras, quem sabe, até um dia celebrado em colónias em outros planetas, na Lua, em Marte ou até noutros sistemas estrelares.
O feito da Apolo 11 mostrou ao mundo aquilo de que somos capazes se nos concentrarmos num grande objectivo e abriu caminhos para um mundo melhor, assim nós saibamos aprender com o seu exemplo. Neil Armstrong acabou por ser apenas o porta-estandarte de uma missão que envolveu centenas e centenas de pessoas entre astronautas, engenheiros e tantos outros profissionais, mas a sua atitude humilde perante o seu feito ajudou também a desenhar a letras ainda mais douradas o seu nome nos anais da história da humanidade. Adeus Neil, não serás esquecido.

domingo, agosto 26, 2012

Postais das Selvagens


5 - Primeiro dia na ilha

Planalto da Selvagem Grande com o Pico dos Tornozelos ao fundo

No dia seguinte, acordei pronto para o meu primeiro dia na ilha. Saí do quarto e logo na varanda abarquei a vista soberana sobre o Atlântico, que entre as rochas da enseada vinha beijar a terra a menos de vinte metros da minha pessoa. Cheirava a maresia, claro, e nos ares as cagarras continuavam já o seu habitual concerto zurrado e coaxado. Foi nesta varanda que foi tomado o pequeno almoço, igual a tantos que viria a tomar nas seis semanas seguintes, sempre a saberem mais à vista e ao aroma do oceano do que aos sabores exactos dos alimentos. Pouco depois, chegou a hora de subir pela primeira vez ao planalto da ilha e abarcar finalmente a ilha por inteiro. A subida não é fácil, não por haver falta de degraus ou de aderência, mas porque a inclinação é muita e altura também. Não devem ser muito menos que cem metros na vertical, e muitos mais na linha curva e tortuosa do caminho entre rochas e calhaus.
Antes de pensar em aves, ou nas vistas, a primeira coisa que notamos é a profusão de lagartixas que populam na ilha em números prodigiosos. Já as tinha visto pela casa e na varanda, às dezenas sempre a correr de pedra em pedra em busca de sol e alimento, mas agora enquanto caminhávamos em direcção ao planalto parecia razoável assumir que debaixo de casa pedra da ilha existirá pelo menos uma, se não muitas mais lagartixas de tom acinzentado e cauda serpenteante. Mas rapidamente esquecemos as lagartixas, que de tantas se tornam parte da paisagem e começamos a notar os outros prodígios das ilhas. A vegetação é parca e raquítica, mas saltam à vista uns pequenos tomateiros, ricos em pequenos tomates mais ou menos maduros que me dizem serem os mais gostosos que existem. Mas claro, numa ilha pequena com dezenas milhares de cagarras, estas acabam por dominar as atenções. Começamos por ver uma sentada no seu ninho num nicho rochoso, mais alguns passos e avistamos outra e mais outra. Qualquer pequena cavidade serve para fazerem ninho, sejam orifícios naturais nas rochas, fruto da erosão dos elementos, sejam montículos de pedras fruto do acaso ou de mão humana, sejam construções mais firmes, muros e muretes de pedra solta habilmente montados por antigos visitantes à ilha. Existem ninhos junto ao caminho, por cima do caminho e, até debaixo do caminho. Por vezes entre uma passada notamos que debaixo da pedra onde colocamos o pé lá se aninha uma cagarra, olhando para nós com olhar talvez reprovador, talvez meramente curioso. Pelo caminho, dobrado o primeiro obstáculo ao horizonte, avistamos a Enseada das Galinhas, uma baía um pouco maior que a primeira, onde fica a casa, mas com escarpas igualmente abruptas e agrestes. No seu limite oriental fica o Pico do Inferno, o terceiro ponto mais alto da ilha, que nas suas profundezas rochosas, junto ao mar, esconde uma gruta homónima que imediatamente junto à lista de locais a visitar nas próximas semanas.
É próximo do Pico do inferno que chegamos ao planalto, o topo da ilha. É relativamente plano, mas dominado por uma elevação alongada de um castanho violento, o Pico dos Tornozelos, do lado oriental, e por um monte agudo encimado pelo farol da ilha, o Pico da Atalaia, ponto mais alto da Selvagem Grande com 163 metros acima do nível do mar. O Pico dos Tornozelos esconde a parte norte da ilha, uma continuação deste planalto em que agora me encontro, que termina em escarpas íngremes que caiem sobre o mar na vertente norte da ilha. À direita desse pico fica a Enseada das Pedreiras, a maior da ilha, que esconde nas suas falésias a gruta auspiciosamente baptizada como Gruta do Capitão Kidd. Esta parte sul do planalto é pedregosa, como seria de esperar, e percorrida por alguns caminhos estreitos, delimitados por pedras escuras, e por quatro longos muros de pedras empilhadas, com algumas centenas de metros de extensão, onde as cagarras e as almas-negras nidificam em buracos mais ou menos profundos. Entre as pedras despontam diversas plantas, arbustos e ervas secos e nada verdes, do tipo de plantas que consegue arduamente sobreviver nestes locais secos e pouco férteis. Subindo ao Pico dos tornozelos, avista-se o Chão dos Caramujos, uma zona branca que ao longe parece ser um areal de areias do mais puro branco, mas que na verdade são as conchas de milhões de caracóis mortos que ali se acumulam desenhando no chão uma mancha com o branco cadavérico dos seus esqueletos de molusco gastrópode. Logo me avisam que nas zonas em redor do Pico dos Tornozelos não me é permitido caminhar, são zonas menos pedregosas onde os calcamares fazem os seus ninhos em buracos no parco solo da ilha, podendo as frágeis estruturas abater sob o nosso peso e soterrar os seus habitantes, sejam eles ovos, crias ou adultos a incubar a proxima geração.

sexta-feira, agosto 24, 2012

Postais das Selvagens


4 - Selvagem Grande com Donetsk no horizonte

Sala da casa da reserva na Selvagem Grande, invadida pelos marinheiros
 à hora do Portugal-Espanha.

Depois deste desvio, retomamos então a rota em direcção à Selvagem Grande, onde chegaríamos por voltas das 14:30. A primeira impressão foi de uma pequena montanha que se ergue do mar, de rocha escura e rude descendo até ao mar em vertentes íngremes. Rapidamente vislumbramos a casa da reserva, junto ao mar, numa enseada certeiramente denominada de Enseadas das Cagarras. O nosso patrulha fundeou a talvez uns quinhentos metros da costa e demos início ao desembarque de pessoas e mantimentos através de botes, tendo eu chegado à ilha na terceira viagem. Não houve muito tempo para tomar primeiras impressões, entre a labuta da descarga do material e dos mantimentos e as saudações e cumprimentos aos colegas que nós vínhamos render. Talvez possa dizer que a primeira impressão foram as águas límpidas e convidativas da enseada, que se rasga em várias pequenas baías divididas pela bruta rocha vulcânica da ilha. Ou talvez fosse o canto das cagarras que nos dão as boas-vindas no seu tom que a mim sempre pareceu uma mistura entre o zurrar do burro e o coaxar das rãs. Eram às dezenas, voando sobre as nossas cabeças, mas rapidamente me disseram que cheguei num dia fraco, que no próximo pico dos estranhos ciclos em que estas aves vêm a terra visitar os ninhos elas seriam muitas, muitíssimas mais nos céus. Não demorei muito a verificar que era verdade.
Esta rendição foi algo sui generis, pois havíamos chegado num dia muito particular. Quis o destino que neste dia tivesse lugar o desafio de futebol entre Portugal e Espanha, para as meias finais do campeonato europeu de futebol. O jogo ia ser disputado em Donetsk, na Ucrânia, a muitos milhares de quilómetros de distância, mas a tecnologia e os satélites permitem que até aqui, no limite sul de Portugal, algumas dezenas de concidadãos pudessem sofrer ao vivo pelo sua selecção. Ainda durante a viagem de barco o imediato e o comandante do Cuanza haviam indagado se seria possível vir a terra para ver o jogo, e, sendo a nossa resposta afirmativa, lá escolheram entre os marujos a quem seria dada a benesse de ir a terra e fomos quase trinta ao todo, apinhados na sala de estar, a ver o jogo que infelizmente acabou mal para as cores nacionais. Incapazes de resolver o jogo em 120 minutos de futebol, Portugal e Espanha foram obrigados a tirar as teimas num desempate por grandes penalidades, em que a sorte, ou a habilidade, sorriram a nuestros hermanos.
Acabado o desafio, cuja derrota na excitação da chegada a um sitio novo e extraordinário pouco desalento me trouxe, marinheiros e civis trataram de embarcar no barco e deixaram apenas três na ilha. Três seres humanos mais de cem quilómetros de qualquer outro representante da sua espécie, com a eventual excepção de algum barco que passasse ao largo. Além de mim e do vigilante Jaques, ficou na ilha a minha colega Maria, veterana acabada de passar três semanas na ilha e pronta para mais três.

terça-feira, agosto 21, 2012

Postais das Selvagens


3 - Selvagens à vista

Vislumbra-se o leve vulto da Selvagem Pequena no horizonte, sob o olhar
 atento de um dos marinheiros do N.R.P. Cuanza

Por volta das dez horas avistamos a Selvagem Pequena, nosso primeiro destino do dia. Por entre a neblina que demorava a levantar, avistamos um triângulo de lados desiguais, o pequeno pico que domina a ilha, que mais tarde me disseram chamar-se Pico do Veado. A silhueta da ilha foi crescendo no horizonte, como se se erguesse lentamente das águas, e eventualmente começamos também a ver o resto da ilha, composta por praias arenosas e muitas rochas, assim como os muitos ilhéus que circundam a ilha. Notava também na vertente da ilha um tom esverdeado da pouca vegetação que por lá cresce.
Assim que nos aproximámos, surgiram em redor do barco andorinhas-do-mar a dar-nos as boas vindas com os seus chilreios, assim como algumas gaivotas que nos sobrevoaram com o ar enfadado de quem se apercebe que este barco não era um pesqueiro e não oferecia nem peixe nem outra fonte de alimento. Surgiu também o bote dos vigilantes que depois de três semanas sozinhos, quais Robinson Cruzués voluntários, deviam estar ansiosos por voltar a ver outros entes da sua espécie. Com uma eficácia extraordinária, trouxeram para bordo o seu equipamento e uma quantidade tristemente impressionate de sacos cheios de lixo que tinham recolhido durante a estadia na ilha. O lixo, claro, não era dali, era oriundo de terras civilizadas distantes, na sua maioria plásticos numa profusão de garrafas, embalagens e caricas que nos lembram o impacto que a humanidade tem sobre este planeta, que se faz sentir até mesmo nestes lugares remotos e aparentemente selvagens e pristinos.
Acabado o embarque de pessoas e material na Selvagem Pequena, e avistado ali tão perto o tal Ilhéu de Fora que marca o limite sul de Portugal, o barco zarpou com destino à Selvagem Grande, o meu destino. A viagem que normalmente demoraria pouca mais de uma trintena de minutos, acabou por durar bem mais, fruto das obrigações de patrulhamento que naturalmente se exigem de um patrulha. Em vez de virar logo para nordeste, o barco teve de seguir para sul para controlar um barco que se aproximava indevidamente de águas portuguesas. Felizmente não houve necessidade de batalha naval. Ou por nos ter avistado, ou porque realmente não pretendia invadir as nossas águas, o barco virou para outras águas e libertou a marinha das suas funções mais bélicas.

terça-feira, agosto 14, 2012

Postais das Selvagens


2 - Partida do Funchal

A bordo do patrulha N.R.P. Cuanza, com o Funchal ao fundo

Para chegar às selvagens tive de recorrer à ajuda da marinha, que tem a responsabilidade de patrulhar aquelas águas contra a ocasional introsão de algum barco de pesca estrangeiro, geralmente espanhol, e que trata também de realizar as rendições dos vigilantes do Parque Natural da Madeira que ficam nas ilhas para vigiar o seu património natural. Depois de um dia e meio no Funchal, e de comprados todos os mantimentos necessários, embarquei no barco patrulha N.R.P. Cuanza às 23 horas do dia 26 de Junho de 2012, tendo o navio zarpado uma hora de depois, sob uma meia lua em quarto crescente e alguma neblina.
Um mar estava calmo, quase não se sentia a ondulação a bordo, e verifiquei que os tripulantes viam os passeiros, eu e o vigilante Jaques, como mais uma peça de equipamento que tinham de transportar. Da fama de oficiais e cavalheiros, estes marinheiros pouco proveito tiravam, no dia seguinte nem comida nos ofereceram enquanto almoçavam o seu arroz de polvo. Achei melhor esforçar-me por não os incomodar e sair do caminho porque naturalmente tinham o seu oficio a desenpenhar. Fiquei a ver as luzes do Funchal desaparecer durante talvez uma hora e depois procurei um pouso onde dormir um pouco, no porão do navio. O chão podia ser de ferro e o ruído dos motores algo insurdecedor, mas nada disso me impediu de dormir um belo sono.
Acordei por volta das oito da manhã, um pouco dorido da cama de ferro, mas restabelecido e pronto para o dia que começava. Quando subi ao convés vi o mar alto a toda a volta, no horizonte nem terra nem navio, só o eterno buliço do oceano. Pensei para com os meu botões que nunca tinha estado no mar tão longe de terra, e deixei-me ficar a apreciar o espetáculo das ondas em infinitos tons de cinzento, sob o céu baixo e plumbeo. Indiferentes à nossa presença, e ao ruído dos motores, iam passando por nós aves marinhas, que no seu domínio total dos ventos conseguiam facilmente ultrapassar o navio e dar voltas em nosso redor. A maioria eram cagarras e almas-negras, mas também os calcamares, no seu jeito brincalhão de cangurus dos mares, iam saltitando sobre as águas, de onda em onda.

sábado, agosto 11, 2012

Postais das Selvagens


1 - Das Selvagens...


Das selvagens ouvira eu falar muito pouco. Fronteira sul da nação, chamam-lhe os garbosos militares da aviação, que por lá eregeram uma placa comemorativa num tom que soará talvez a melancolia pelos tempos do império ultramarino.
Sabia delas a posição, desenhada nos mapas entre a Madeira e as Canárias, mais perto de Tenerife que de terras lusas, confirmando a sua função de posto avançado da pátria de Camões contra a coroa espanhola. Sentia-lhes também o sabor do nome, selvagens como os nativos de selvas distantes. Soa a nome de terra agreste e inóspita onde o planeta recebe com maus olhos a visita do homem. Lembra também outras tantas palavras rudes, essoutras que o dicionário associa a selvagem, coisas como silvestre, bravio, inabitado, inculto, não civilizado, ermo, maninho, até mesmo malvado. Não me lembram porém a selvajaria, essa que é bem mais comum nos domínios do homem civilizado do que nas terras dos selvagens.
Sabia serem pequenas ilhas, que talvez corações menos orgulhosos de outras pátrias tivessem chamado ilhéus. A maior, tão doutamente nomeada Selvagem Grande, é como que um pentágono de arestas mais ou menos erodidas que mal chegam aos dois quilómetros de extensão. A menor, sem grandes surpresas chamada Selvagem Pequena, é mais alongada e as suas poucas centenas de metros mal se erguem sobre as águas do oceano, de tal formas que se diz duplicar de tamanho durante a baixa-mar. Existem ainda vários ilhéus menores, atrevo-me a dizer ainda menores, com nomes como o Palheiro de Mar e o Palheiro de Terra, junto à Selvagem Grande, e o Ilhéu Grande, o Ilhéu Pequeno, o Ilhéu Redondo, o Ilhéu Comprido, os Ilhéus do Norte, o Ilhéu Alto, o Ilhéu do Sul e o Ilhéu de Fora, todos junto à Selvagem Pequena, sendo que a ponta sul do Ilhéu de Fora é oficialmente o ponto mais a sul de Portugal, cruzando por poucos metros o paralelo dos 30º Norte. Para além destes, existem ainda vários pequenos baixios e escolhos pouco convidativos para marinheiros distraídos.
Conhecia sobretudo o valor destas ilhas enquanto colónias de aves marinhas, como a cagarra que aqui tem a maior colónia do mundo com mais de 30.000 casais, a alma-negra, o calcamar, o roquinho e o pintaínho, tendo sido este o motivo que me levou, ou antes me permitiu, visitar estes pedaços remotos de Portugal.