quarta-feira, fevereiro 15, 2006

Os loucos de Lisboa

Espero não ser mal intrepertado neste post, vou tentar explicar-me bem. Não acham que os loucos das ruas são um aspecto importante da identidade de uma cidade? Não existe como que um conforto estranho na ideia de sabermos que eles existem, de sabermos onde os vamos encontrar e de os conhecermos?
Se calhar digo isto porque sempre suspeitei que um dia, no futuro, eu vou ser um deles. Mas à algo de fascinante e poético nesses loucos que andam nas ruas, a anunciar o fim do mundo, a discutir o preço da chuva, a chamar nomes às àrvores, ou simplemente a dizerem boa tarde a quem passa. Não que eu não tenha penas destas pessoas, que tantas vezes vivem em situações de grande solidão e angustia, ou mesmo em condições de profunda miséria, claro que seria melhor se não fossem loucos, se tivessem uma casa e uma família e vivessem felizes. Mas olhando para a cidade como um todo, pensando de fora, sem pensar nos indivíduos, à algo de reconfortante em saber que na esquina junto ao Júlio de Matos estará sempre um senhor a conversar com a árvore, que no Saldanha está aquele senhor vestido de branco a dizer olá aos carros que passam, que na Rua do Cruzeiro, na Ajuda, onde eu vivia antigamente, está sempre lá o senhor que todos, mas todos os dias me pedia cigarros, por mais que eu lhe dissesse que não fumava, e que me desejava bons dias em todos os dias que me via, mesmo quando eu não lhe oferecia uma bolacha em troca do seu sorriso.
De alguma forma, os loucos da cidade enriquecem a cidade de Lisboa, dão-lhe um toque de fascinio que, aliás, já foi notado antes, ou não existiria aquela música sobre eles:

Parava no café quando eu lá estava
Na voz tinha o talento dos pedintes
Entre um cigarro e outro lá cravava
a bica, ao melhor dos seus ouvintes

As mãos e o olhar da mesma cor
Cinzenta como a roupa que trazia
Num gesto que podia ser de amor
Sorria, e ao sorrir agradecia

São os loucos de Lisboa
Que nos fazem recordar
A Terra gira ao contrário
E os rios correm para o mar

Um dia numa sala do quarteto
Passou um filme lá do hospital
Onde o esquecido filmado no gueto
Entrava como artista principal

Compramos a entrada p'ra sessão
Pra ver tal personagem no écran
O rosto maltratado era a razão
De ele não aparecer pela manhã

Mudamos muita vez de calendário
Como o café mudou de freguesia
Deixamos de tributo a quem lá pára
Um louco a fazer-lhe companhia

E sempre a mesma posse o mesmo olhar
De quem não mede os dias que vagueam
Sentado la continua a cravar
Beijinhos as meninas que passeiam.

João Monge / Ala dos Namorados

4 comentários:

Ana Elias disse...

O que eu acho de mais fascinante nesses loucos de que falas, é que, se estiveres atento ao que dizem, embora desenquadrados da realidade e das convenções sociais, muitas vezes dizem coisas absolutamente geniais. Quase todos eles, já terão em tempos sido pessoas ditas "normais" e foi a própria sociedade que os enlouqueceu... daí que cada um de nós se consiga rever neles.

Tenho as minhas preferências: Gosto especialmente de um rapaz ainda novo que sobe e desce a Av. da Liberdade a cantar ao berros, andando ao ritmo da música... diz lá que nunca te apeteceu fazer o mesmo? A mim já!
E o que os torna únicos, corajosos e valentes é o facto de cometerem os "actos de loucura" sozinhos...
Porquese um de nós subir a Av. da Liberdade à noite, acompanhado de um grupo de amigos, não é louco. Pensarão, eventualmente que são uns cpos a mais, mesmo que não sejam...
Gostei deste post. É coerente. Já pensei o mesmo muitas vezes... por isso, se alguém te apedrejar... avisa-me!

Unknown disse...

Pois, pois...
Já nos estou a ver daqui a uns anos, eu numa esquina a apregoar o fim do mundo e tu na esquina de frente a dançar com um candeeiro...

Ana Elias disse...

Se queres saber já vi finais de vida bastante mais tristes...
Aliás, por mim, está combinado!

Unknown disse...

ok. combinado ;)