5 - Primeiro dia na
ilha
Planalto da Selvagem Grande com o Pico dos Tornozelos ao fundo |
No dia seguinte, acordei pronto para o meu primeiro dia na ilha. Saí
do quarto e logo na varanda abarquei a vista soberana sobre o
Atlântico, que entre as rochas da enseada vinha beijar a terra a
menos de vinte metros da minha pessoa. Cheirava a maresia, claro, e
nos ares as cagarras continuavam já o seu habitual concerto zurrado
e coaxado. Foi nesta varanda que foi tomado o pequeno almoço, igual
a tantos que viria a tomar nas seis semanas seguintes, sempre a
saberem mais à vista e ao aroma do oceano do que aos sabores exactos
dos alimentos. Pouco depois, chegou a hora de subir pela primeira vez
ao planalto da ilha e abarcar finalmente a ilha por inteiro. A subida
não é fácil, não por haver falta de degraus ou de aderência, mas
porque a inclinação é muita e altura também. Não devem ser muito
menos que cem metros na vertical, e muitos mais na linha curva e tortuosa do caminho entre rochas e calhaus.
Antes de pensar em aves, ou nas vistas, a primeira coisa que notamos
é a profusão de lagartixas que populam na ilha em números
prodigiosos. Já as tinha visto pela casa e na varanda, às dezenas
sempre a correr de pedra em pedra em busca de sol e alimento, mas
agora enquanto caminhávamos em direcção ao planalto parecia razoável
assumir que debaixo de casa pedra da ilha existirá pelo menos uma,
se não muitas mais lagartixas de tom acinzentado e cauda
serpenteante. Mas rapidamente esquecemos as lagartixas, que de tantas
se tornam parte da paisagem e começamos a notar os outros prodígios
das ilhas. A vegetação é parca e raquítica, mas saltam à vista
uns pequenos tomateiros, ricos em pequenos tomates mais ou menos
maduros que me dizem serem os mais gostosos que existem. Mas claro,
numa ilha pequena com dezenas milhares de cagarras, estas acabam por
dominar as atenções. Começamos por ver uma sentada no seu ninho
num nicho rochoso, mais alguns passos e avistamos outra e mais outra.
Qualquer pequena cavidade serve para fazerem ninho, sejam orifícios
naturais nas rochas, fruto da erosão dos elementos, sejam montículos
de pedras fruto do acaso ou de mão humana, sejam construções mais
firmes, muros e muretes de pedra solta habilmente montados por antigos
visitantes à ilha. Existem ninhos junto ao caminho, por cima do
caminho e, até debaixo do caminho. Por vezes entre uma passada
notamos que debaixo da pedra onde colocamos o pé lá se aninha uma
cagarra, olhando para nós com olhar talvez reprovador, talvez
meramente curioso. Pelo caminho, dobrado o primeiro obstáculo ao
horizonte, avistamos a Enseada das Galinhas, uma baía um pouco maior
que a primeira, onde fica a casa, mas com escarpas igualmente
abruptas e agrestes. No seu limite oriental fica o Pico do Inferno, o
terceiro ponto mais alto da ilha, que nas suas profundezas rochosas,
junto ao mar, esconde uma gruta homónima que imediatamente junto à
lista de locais a visitar nas próximas semanas.
É
próximo do Pico do inferno que chegamos ao planalto, o topo da ilha.
É relativamente plano, mas dominado por uma elevação alongada de
um castanho violento, o Pico dos Tornozelos, do lado oriental, e por
um monte agudo encimado pelo farol da ilha, o Pico da Atalaia, ponto
mais alto da Selvagem Grande com 163 metros acima do nível do mar. O
Pico dos Tornozelos esconde a parte norte da ilha, uma continuação
deste planalto em que agora me encontro, que termina em escarpas
íngremes que caiem sobre o mar na vertente norte da ilha. À direita
desse pico fica a Enseada das Pedreiras, a maior da ilha, que esconde
nas suas falésias a gruta auspiciosamente baptizada como Gruta do
Capitão Kidd. Esta parte sul do planalto é pedregosa, como seria de
esperar, e percorrida por alguns caminhos estreitos, delimitados por
pedras escuras, e por quatro longos muros de pedras empilhadas, com
algumas centenas de metros de extensão, onde as cagarras e as
almas-negras nidificam em buracos mais ou menos profundos. Entre as
pedras despontam diversas plantas, arbustos e ervas secos e nada
verdes, do tipo de plantas que consegue arduamente sobreviver nestes
locais secos e pouco férteis. Subindo ao Pico dos tornozelos,
avista-se o Chão dos Caramujos, uma zona branca que ao longe parece
ser um areal de areias do mais puro branco, mas que na verdade são
as conchas de milhões de caracóis mortos que ali se acumulam
desenhando no chão uma mancha com o branco cadavérico dos seus
esqueletos de molusco gastrópode. Logo me avisam que nas zonas em
redor do Pico dos Tornozelos não me é permitido caminhar, são
zonas menos pedregosas onde os calcamares fazem os seus ninhos em
buracos no parco solo da ilha, podendo as frágeis estruturas abater
sob o nosso peso e soterrar os seus habitantes, sejam eles ovos,
crias ou adultos a incubar a proxima geração.
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