terça-feira, outubro 16, 2012

Economia


Nos nossos dias, fruto da crise, toda a gente fala de economia. Em muitas áreas, esse tipo de cacofonia resulta em que muita coisa absurda seja dita, sobretudo por todos aqueles que não têm formação na área e gostam de mandar bitaites, como acontece por exemplo em matérias legais ou em matérias científicas. Curiosamente, na discussão económica, parecem ser os próprios economistas quem diz as coisas mais absurdas, sendo o cidadão comum aquele que parece perceber melhor a economia.
Esta aparente contra-senso resulta, na minha opinião, do facto de todos os cidadão serem na verdade peritos em economia, pelo menos em micro-economia, por viverem todos os dias da sua vida com limitações económicas moderadas a severas. Extraordinariamente, muitos economistas que até tiverem uma formação técnica aprofundada, são incapazes de compreender a economia real porque nunca passaram por ela, muitos saíram das faculdades diretamente para tachos, partidários ou não, sem nunca terem vivido o que é realmente a economia.
Convém aqui evitar a generalização injusta. Existem muitos economistas racionais e competentes, tanto do lado direito como do lado esquerdo do debate político. Podemos não concordar com as opiniões ideológicas deles, mas temos de aceitar a sua competência técnica.

Depois desta longa introdução, gostaria de dar o meu contributo científico a esta temática. Posso não ter formação técnica em economia, só tenho o tal saber empírico de viver com os euros contados, mas tenho bastante formação matemática e estatística, por um lado, e tenho outra grande ferramenta à minha disposição que os economistas desconhecem, o método científico. 
O método científico é o modelo filosófico empirista que permitiu à ciência usar a realidade para ir ao longo do tempo corrigindo e aperfeiçoando as suas teorias. Na sua base, este modelo resume-se a algo muito simples: gerar modelos (por outras palavras, hipóteses); fazer previsões com base nesses modelos, testar essas previsões com base em dados empíricos, isto é, com base na realidade; aceitar o modelo se os dados o confirmarem ou rejeitá-lo em caso contrário; com base nestes resultados gerar novos modelos mais correctos. Foi este método nos permitiu perceber o Universo desde os seus elementos mais elementares à sua organização à escala cósmica, que nos permitiu compreender o funcionamento dos mais complexos sistemas do corpo humano, ou recapitular a história do nosso planeta ao longo de milhares de milhões de anos.
Infelizmente, a maioria dos economistas modernos segue o seu próprio sistema, que poderemos chamar de acéfalo, que se resume a copiar um modelo que alguém já inventou, acreditar cegamente nele e negar quaisquer dados reais que provem que este modelo está errado. É o caso óbvio da chamada receita da austeridade que está em voga na Europa actual.

Olhemos então para a realidade do mundo actual. Qual é o problema que se nos coloca? Será mesmo as devidas excessivas dos países, a conversa falaciosa do "vivemos acima das nossas possibilidades"? Olhando para a questão como um leigo, a mim parece-me óbvio que se a economia funcionava bem nos anos 60 e 70 e em larga medida nos anos 80 (não no caso de Portugal porque vivíamos numa ditadura, mas estou a falar do mundo ocidental em geral), o que temos de perguntar realmente são quais as diferenças entre a economia actual e a economia desse período próspero.
As principais diferenças parecem a mim resumir-se a uma: houve uma desregulação maciça dos mercados financeiros que resultou numa transferência brutal de riqueza da economia real (isto é das empresas produtoras e dos trabalhadores) para a finança, isto é, para os fundos de investimento, para os grandes bancos, para a especulação bolsista.
Poderão dizer que houveram outras mudanças, que a demografia alterou-se profundamente, aumentando a proporção de pensionistas, e que os gastos com saúde aumentaram exponencialmente, devido aos avanços médicos, ao envelhecimento da população e, também à especulação vergonhosa da empresas da área médico-farmacêutica. Isso é verdade, mas no mesmo período a riqueza dos países cresceu também de forma exponencial, pelo que esses gastos deveriam ser possíveis de comportar, apenas acompanhados de um eventual aumento da idade de reforma e provavelmente de tectos para evitar desperdiçar dinheiro em reformas milionárias, aliados a apoios aos PPRs, com foi feito em muitos países. A verdade é que dos anos 60 até hoje o PIB português subiu cerca de 28000% (dados Pordata) pelo que o argumento de que não havia dinheiro para suportar o nosso nível de vida é pura falsidade.
O verdadeiro problema, que quase nenhum economista discute, é que do bolo total da riqueza produzida em cada país, a percentagem representada pela produção e pelos trabalhadores caiu e a percentagem ocupada pelo capital especulativo, e não produtivo, cresceu. Infelizmente não consegui encontrar dados sobre o nível desta mudança, mas é por demais óbvio que tal se passou, não sequer alvo de discussão. Ao mesmo tempo, em vez de se re-equilibrar a balança fiscal para a fazer incidir mais sobre o capital, onde está agora o dinheiro, e menos sobre a produção e as famílias, onde ele diminui, a tendência foi a inversa. De 1995 para 2010 a razão entre os impostos cobrados aos rendimentos e à produção e os impostos cobrados ao capital aumentou de 1:320 para 1:450 (dados Pordata). Pior que isso, 2010 foi já um ano de crise, em que se aumentaram alguns impostos sobre o capital. Nos anos antes da crise, fruto da crescente não-taxação do capital esta razão chegou aos inacreditáveis 1:120.000 (dados Pordata).
Usando uma metáfora para descrever esta situação, imaginemos uma família que vive no campo e cuja subsistência depende de uma horta e de uma seara. Como a horta representava no passado a maior fatia da sua produção de alimentos, a sua alimentação compunha-se de 80% de produtos da horta e de 20% de produtos da seara. Ao longo dos anos, a horta foi produzindo cada vez menos alimentos, enquanto a produção da seara aumentou. Contudo, esta família em vez de passar a consumir mais comida da seara, aumentou ainda mais a sua dependência da horta, para 90%. Todos os anos deixam grandes quantidades de cereal apodrecer, e passam fome porque a horta agora produz menos. Enquanto morrem de fome, olham para a imensa pilha de cereais que vão para o lixo e dizem: "Vamos morrer à fome porque andamos a viver acima das nossas possibilidades, comíamos mais do que aquilo que produzíamos". Obviamente isto é um total absurdo. Mas é exactamente este o cenário delineado pela maioria dos economistas.

Como disse acima, não encontrei dados sobre o nível de transferência de riqueza da produção e do trabalho para o capital, mas vamos assumir que foi uma transferência meramente moderada, passou de 60/40 para 40/60. Vamos também assumir que a disparidade entre a taxação de cada lado era mais moderada, cobramos 60% ao trabalho e 40% ao capital, de acordo com a proporção deles na riqueza. Obtínhamos então um ganho total de 60*0.6 + 40*0.4 = 52 nos impostos. Passamos para a situação nova, em que o capital passou a representar 60% da riqueza, mas nem vamos reduzir ainda mais a taxação do capital, como fizeram os nossos governos, vamos meramente manter a taxação antiga, isto é, 60% sobre o trabalho e 40% sobre o capital. Passamos agora a obter um ganho total de apenas 40*0.6 + 60*0.4 = 48 nos impostos.  O país, sem gastar dinheiro com nada, sem gastos milionários, sem elefantes brancos e sem aldrabices políticas passou a ganhar menos 7,8%. Isto é, o défice público aumento quase 8% só com esta moderada transferência de riqueza para o capital e sem piorar a justiça fiscal.

Agora vamos assumir um cenário mais duro, e possivelmente mais realista. Vamos assumir que a transferência de riqueza do trabalho para o capital foi de  tal forma que a razão entre os dois passou de 70/30 para 30/70. Vamos também assumir que, como os dados o provam, a taxação ao capital em vez de aumentar, diminuiu, ou seja no inicio taxávamos a 70% o trabalho e a 30% o capital e no final taxamos o trabalho a 70% e o capital a 20%. No início obtínhamos um ganho de 70*0,7 + 30*0,3 = 56 nos impostos. Depois da riqueza passar para o capital e de os impostos ficarem ainda mais injustos, passamos a ter um ganho de 70*0,2 + 30*0,7 = 35 nos impostos. Neste cenário o país agravou o défice público em 37,5% sem ter gasto um tostão no que quer que seja. Convém perceber que os números reais são muitos mais assustadores porque a razão entre os impostos do capital e do trabalho é imensamente mais díspar, como foi referido acima com base em dados oficiais, pelo que a consequência desta transferência de riqueza de uma área para a outra é substancialmente mais gravosa para o défice do estado.

Acho que fica aqui bastante claro de que forma é que o nosso país chegou realmente à situação dramática a que chegou. Não foram os gastos loucos, não foi a fuga fiscal, não foi a falta de produtividade da força laboral, nem sequer foi tanto a incompetência dos políticos. A crise da dívida pública e dos défices fiscais no mundo ocidental, resultou sobretudo da transferência de riqueza do sector da produção e do trabalho para o sector financeiro, sem que os estados tivessem actualizado a sua política fiscal para acompanhar essa evolução, com a agravante que em muitos casos pioram ainda mais a situação baixando a taxação do capital enquanto aumentavam desesperadamente os impostos sobre o trabalho, onde por e simplesmente o dinheiro já não está. Voltando às metáfora, é como se numa cidade abastecida por duas barragens, uma grande num rio e uma muito mais pequena num outro rio diferente, enquanto o caudal do primeiro rio é transferido para o outro por meio de transvases, a cidade insista em represar desesperadamente e cada vez mais o rio que está a perder caudal, sem se aperceber que a água está toda a fugir pelo outro rio onde a barragem já de si pequena foi ainda mais diminuida. Pode parecer estranho, mas parece-me, da minha perspectiva cientifica de quem se limita a olhar para a realidade, que é isto que está a acontecer às nossas economias, com as consequências que todos conhecemos e que todos sentimos na pele, e que a médio prazo terão como resultado inevitável a queda dos regimes democráticos em que vivemos.

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