Estar longe do nosso país ajuda bastante a conhecer melhor as nossa própria cultura. Desde que aqui estou, na Holanda, apercebi-me que não há música que mais me recorde de Portugal do que as músicas do Sérgio Godinho. Nomeadamente, e talvez porque em Lisboa eu moro ao pé da Feira da Ladra, à uma música que me deixa sempre sempre cheio de saudades da tugolândia:
É Terça-Feira
É terça-feira
e a feira da ladra
abre hoje às cinco
de madrugada
E a rapariga
desce a escada quatro a quatro
vai vender mágoas
ao desbarato
vai vender
juras falsas
amargura
ilusões
trapos e cacos e contradições
É terça-feira
e das cinzas talvez
amanhã que é quarta-feira
haja fogo outra vez
o coração é incapaz de dizer
"tanto faz"
parte p'ra guerra
com os olhos na paz
É terça-feira
e a feira da ladra
quase transborda
de abarrotada
E a rapariga
vende tudo o que trazia
troca a tristeza
pela alegria
E todos querem
regateiam
amarguras
ilusões
trapos e cacos e contradições
É terça-feira
e das cinzas talvez
amanhã que é quarta-feira
haja fogo outra vez
o coração
é incapaz
de dizer
"tanto faz"
parte p'ra guerra
com os olhos na paz
É terça-feira
e a feira da ladra
fica enfim quieta
e abandonada
e a rapariga
deixou no chão um lamento
que se ergue e gira
e roda com o vento
e rodopia
e navega
e joga à cabra-cega
é de nós todos
e a ninguém se entrega
É terça-feira
e das cinzas talvez
amanhã que é quarta-feira
haja fogo outra vez
o coração
é incapaz
de dizer
"tanto faz"
parte p'ra guerra
com os olhos na paz
Sérgio Godinho
Aquela parte do lamento, que rodopia, e naveja, e joga à abra-cega, lembra-me a imagem que tantas vezes vi, do final da feira da ladra, qundo as pessoas já são poucas e os restos (no fundo, o lixo) espalhados pelo chão, são arrastados pelo vento e colhidos pelos empregados da câmara. Enfim, estou a ficar nostalgico, vou ficar por aqui. Mas haverá alguma coisa mais lisboeta e, inevitavelmente, portuguesa do que esta imagem aqui pintada em música e palavras?
2 comentários:
O Sérgio Godinho tem uma capacidade inigualável de transpor sentimentos e vivências através de letras e músicas.
O Jorge Palma é outro que tal... quando está sóbrio!
Beijinho.
Pois, nas RARAS vezes em que está sobrio. Mas as letras do Sérgio são mais... não sei bem como o dizer, só sei que tocam-me mais.
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