7 - Das cagarras
O biólogo e a cagarra. |
Voltando ao ninho da cagarra, quando verificamos ser um indivíduo
diferente, chega a altura de o retirar do ninho... Convém aqui
explicar que as cagarras têm um bico forte e aguçado, recurvado na
ponta como um anzol. É o resultado perfeito da evolução que
seleccionou os bicos mais eficientes para apanhar peixe no alto mar.
Esses bicos são igualmente eficazes a cortar pedaços de dedos dos
mais incautos, pelo que convém calçar uma luva resistente antes de
afundar o braço no ninho da cagarra. É exactamente pelo bico que
convém agarrar a ave, puxando depois com algum cuidado, e para
natural indignação do animal, até a termos fora do ninho. Algumas
aves ficam sossegadas, aceitando com a sua filosofia natural o
incómodo, mas outras bufam, zurram, esperneiam, enfim lutam com as
suas armas possíveis para que as deixem em paz. Mais bicada menos
bicada acabamos por encontrar uma posição confortável para ave e
biólogo. Depois chega a altura de ler o número da anilha ou, caso
ainda não tenha uma, anilhar a ave com uma anilha nova. Acabado este
encontro imediato do terceiro grau, a ave é devolvida ao ninho, até
porque os ninhos vazios são facilmente predados pelas gaivotas que
chamariam ao ovo solitário um proverbial figo.
O mesmo processo repete-se junto ao vários ninhos, cerca de três
centenas, que são alvo de monitorização. Algumas dezenas de ninhos
de alma-negra são também alvo da mesma atenção, sendo que essa
aves são mais pequenas e têm um bico proporcionalmente menos
ameaçador. Outras actividades incluem retocar a pintura nos números
dos ninhos e procurar indivíduos que têm acoplados aparelhos que
registam a sua localização através da duração do dia ou do
contacto com satélites de posicionamento global. Estes aparelhos
extraordinário permitem conhecer, dia a dia, em alguns casos hora a
hora ou mesmo minuto a minuto as viagens destas aves pelos oceanos.
Muitas destas aves que aqui manuseamos passaram o inverno no
Atlântico Sul, ao largo do Brasil ou da África do Sul ou, em alguns
casos, dobraram mesmo o Cabo da Boa Esperança entrando no Índico
até às costas de Moçambique e Madagáscar. Saberiam Vasco da Gama
e Pedro Alvares Cabral que as suas viagens de descoberta eram já
praticadas à séculos e milénios por estas aves, que nascidas na
Selvagem Grande são tão portuguesas como os nossos famosos
navegadores? Suspeitaria Camões que o seu Adamastor era já velho
conhecido da cagarra?