sexta-feira, fevereiro 09, 2007

Ainda o referendo...


Do lado esquerdo um embrião de um rato, do lado direito um embrião humano. Ambos na terceira semana de desenvolvimento intra-uterino. Segundo os habituais argumentos do Não, o da esquerda tem direito à vida, ou não? Então ele não tem mãozinhas, pezinhos, cabecinha e um coraçãozinho a bater? Já o da direita, dificilmente pode ser classificado à primeira vista como um vertebrado, anda mais próximo de um verme. Contudo, os mesmos adeptos do Não que usam os argumentos das mãozinhas, pezinhos e outros inhos dirão que o da esquerda não tem direito à vida, o da direita sim... Em que ficamos afinal?

sábado, fevereiro 03, 2007

Samuel

O metropolitano rugiu por entre os frios túneis de cimento, num percurso repetido vezes e vezes sem conta, submergindo no espaço aberto da estação como uma baleia cinzenta na vastidão azul do oceano. Sentado sob as pardacentas luzes tremeluzentes da estação, Samuel dardejava com o olhar os transeuntes, que se deslocam impacientemente para a plataforma onde chegava o comboio nocturno. Ele sempre fora um indivíduo solitário, suspeitando dos poucos sorrisos que lhe eram dirigidos, mas enquanto observava as faces vazias dos passageiros, não conseguia evitar perder-se nas inimagináveis histórias que podiam estar a decorrer à sua volta.

Talvez a velhinha, de olhar doce e cachecol verde-acastanhado, fosse realmente um agente secreto a soldo de um qualquer poder baseado no Próximo Oriente, cujo único propósito era destruir a vida dos cidadãos honestos e respeitadores da lei deste país. Ou talvez o homem gordo, de roupas bem arranjadas e capachinho de qualidade duvidosa, pertencesse a uma facção alienígena e se preparasse, através de uma cuidadosa dissimulação dos seus três olhos e pele verde, para tomar o lugar do primeiro-ministro e assim abrir caminho para a inevitável invasão. Apesar da sua prodigiosa imaginação, Samuel nunca tentara colocar os seus devaneios sãos no papel e produzir um romance. Não acreditava que o mundo pudesse ser resumido a meros conjuntos de letras, espalhadas sobre uma frágil folha de papel como crianças no pátio de uma escola. Nunca aceitaria que uma frase, um capítulo, ou mesmo um livro inteiro, pudessem sequer aproximar-se de uma descrição fiel do modo como a luz da lua se reflecte num caco de vidro abandonado sobre o asfalto de uma estrada numa sufocante noite de Agosto.

Samuel levantou-se calmamente, com a lentidão segura de quem já aprendera a valorizar a calma como virtude máxima da vida citadina. As suas passadas, caracteristicamente longas e pesadas, levaram-no na direcção do comboio, onde se sentou à janela. Era um velho hábito, daqueles que são difíceis de perder. Desde pequeno que se habituara a procurar lugares à janela, no metropolitano, como se nas profundezas da sua mente se mantivesse acesa a pequena esperança de um dia, ao olhar pela janela, não ver o cimento enegrecido dos túneis talhados sob a cidade, mas sim uma paisagem verdejante em que esvoaçassem aves brancas sob as nuvens sorridentes de um dia de Primavera. Ao olhar a janela viu-se a si próprio. O seu reflexo relembrava-lhe a sua mortalidade em cada um dos cabelos grisalhos que se começavam a insinuar por entre a sua farta cabeleira escura. Olhava para um homem que já passara a barreira dos quarenta, em que leves rugas deixavam antever a história de vida bem preenchida de aflições e deveres cumpridos, mas cujo olhar mantinha uma jovialidade contagiante por trás das íris castanhas-claras.

O comboio rugiu o seu percurso rápido pelos corredores deste espaço sub-citadino, o expoente máximo da alienação urbana. O passar das diferentes estações, pérolas de cor animadas pelos devaneios artísticos de um qualquer arquitecto, era apenas ritmado pelos sonoros apitos do metropolitano, gritos irritantes de uma criança irrequieta que pareciam gritar “despachem-se, despachem-se, despachem-se”. Uma estação. Arcos verdes, azulejos vermelhos, as cores das luzes reflectiam caras estranhamente familiares, como se todos os habitantes da cidade fossem irmãos à muito perdidos. Segunda estação. Paredes brancas, salpicadas por gotas de vida escritas por um poeta à muito falecido, pequenos farrapos de génio humano ali deixados, abandonados ao desprezo de todos os que por ali passavam a cada dia. Terceira estação. Riscos amarelos quase gritavam num turbilhão de cor, destinado a distrair os olhares perdidos com a subtil esperança de dias mais felizes, menos opressivos. O metropolitano avisava já, histérico, a proximidade da quarta estação quando Samuel o viu. Num relâmpago de impossibilidade, um rosto, talvez humano, olhou para ele, de fora do comboio, para imediatamente ser deixado para trás pelo rápido avanço do metropolitano. Teria sido meramente uma ilusão de óptica, não fora a poderosa impressão que num instante apenas marcara profundamente a alma de Samuel. O olhar suplicante, o desespero gritado a plenos pulmões por um simples brilhar mortiço de dois olhos azuis. Num segundo apenas, Samuel ficou preso naquele túnel para sempre, sem o saber.

O impulso de fazer parar o comboio, recorrendo ao manípulo de emergência expressamente proibido, foi apenas debelada pelo forte instinto cumpridor de quem, durante quarenta anos, aceitou submeter-se às regras e leis de uma cidade sem cor. Samuel ficou sentado no seu lugar, inquieto, ofegante, incapaz de compreender o que se tinha passado. A sua inquietação foi tal que o passageiro que viajava no lugar adjacente lançou-lhe mesmo um improvável olhar de curiosidade, como se a súbita inquietação do seu companheiro de viagem tivesse sido suficiente para o fazer perder a linha de pensamento que o desligava da realidade, tornando, por um segundo apenas, quase humano. Rapidamente mudou a expressão para uma franzida reprovação, retomando o seu frio olhar dirigido ao horizonte inexistente.

A viagem continuou e o metropolitano chegou à estação seguinte, esta a típica estação de metropolitano à antiga, de paredes tão cinzentas como as dos túneis negros por onde deambula esta grande toupeira urbana. Samuel levantou-se e pediu delicadamente licença para passar ao passageiro que se sentava ao seu lado, tendo este apenas respondido com um subtil movimento das pernas para lhe permitir a passagem, enquanto mantinha a expressão de vaga reprovação como quem pensa para si próprio “esta cidade está cheia de loucos, livra!”. Samuel dirigiu-se pausadamente até à porta da carruagem, roçando com o olhar uma jovem rapariga cujas pernas bem torneadas eram evidenciadas pela saia curtíssima. Nunca fora um mulherengo, nem podia gabar-se de grandes façanhas românticas, mas não resistia a lançar um olhar agradado à visão de uma mulher bonita. Ultrapassou a porta do metropolitano enquanto o sinal sonoro começava já a avisar com a sua habitual pressa incontida a eminência do fecho das portas, após o que se dirigiu ao átrio da estação.

Longe de notar a publicidade a filmes, viagens e lâminas de barbear que lhe bombardeavam a mente, o seu pensamento ficara preso aos olhos azuis suplicantes que pensava ter avistado nos túneis do metro. Pensou nesse olhar enquanto permitia que a escada rolante o transportasse até ao piso superior, continuou a relembrar os olhos azuis enquanto passou por dois pedintes cegos que lhe lançaram as habituais súplicas desprovidas de esperança, via as duas orbes azuis como duas manchas gravadas a fogo nos seus olhos enquanto o ultimo lance de escadas o devolveu à alegria da luz solar.