A mera associação das palavras deus e ciência na mesma frase pode ser suficiente para deixar arrepios na espinha de muito boa gente. Desde há séculos que a escolástica religiosa teme profundamente a ciência moderna, vê-a como o inimigo, o mal que pode deixar por terra o edifício poderoso que construíram ao longo de quase duas dezenas de séculos de poder eclesiástico. Por seu lado, a ciência vê por vezes com suspeição as crenças religiosas, tendo-as como perniciosos processos mentais que afastam os intelectos da verdadeira compreensão da realidade. Pois, se a religião tem provavelmente razão para temer a ciência, uma vez que todo o poder da religião se baseia no medo do desconhecido e a ciência exulta-se em cada dia na aventura de iluminar a infinita escuridão da ignorância; já a ciência deve aceitar este tema como um assunto de investigação tão interessante como todas as outras miríades de questões que povoam o Universo. Apenas deve ser clarificado um ponto, toda a boa ciência se deve basear em perguntas correctamente colocada e no que respeita a deus, a pergunta que se coloca é quase sempre uma pergunta errada: Existirá deus? Trata-se de uma ideia cuja falsidade é impossível de provar, pelo que não faz sentido, num referencial científico, pergunta-la. A pergunta correcta, aquela que nos permite uma reflexão inteligente sobre um dos mais interessantes fenómenos sociológicos da humanidade é: como surgiu a crença em deus?
Trata-se de uma formulação diferente, uma busca de causalidades temporais, aparece aqui o resultado de um processo mental novo que a ciência ofereceu à humanidade. A ideia mais genial que saiu dos cânones da ciência moderna foi provavelmente o evolucionismo darwiniano, a evolução por selecção natural. Uma teoria inacreditavelmente simples, de uma elegância extrema, que não revolucionou apenas a Biologia, o ramo da ciência que a viu nascer, mas cujas repercussões se fizeram sentir em todos os campos da ciência e que, de certa forma, revolucionou todo o arcaboiço do pensamento humano. A teoria em si é hoje usada em campos tão diversos como a cosmologia, a física de partículas ou a química orgânica, mas a sua grande dádiva não foi a evolução em si, pois esse é um conceito com já mais de dois mil anos, nem foi mesmo essa selecção natural com que Darwin maravilhou o mundo biológico. O grande avanço que nasceu com o evolucionismo darwiniano foi o pensamento evolucionista, mas do que uma teoria, mais do que uma ideia ou um ideal, trata-se de uma forma de organizar o nosso pensamento, uma maneira de colocar as questões, uma forma de procurar respostas nos padrões da Natureza. É pois natural que eu, um biólogo que, como todos os biólogos modernos, trabalha diariamente com a ideia de evolução sempre a regular a minha compreensão da realidade, olhe para toda a questão da crença humana em deus e pergunte: como é que tudo isso começou? No fundo é a velha questão do ovo ou da galinha, terá sido deus a criar o homem ou o homem a criar deus? Do meu ponto de vista, mesmo sem aprofundar muito a questão, rapidamente se torna obvio que só a segunda hipótese faz sentido. Em ultima análise, foi a ciência que criou deus.
Neste momento, deixei de me referir à ciência no sentido estrito, na versão moderna do empirismo experimentalista de Bacon e Locke, passando a chamar ciência a algo de mais vasto, a todas as iniciativas do homem para preencher essa ansiedade básica que nos parece consumir desde o inicio da nossa consciência, a eterna procura pela compreensão da realidade que nos rodeia. Talvez fosse mais correcto chamar filosofia a essa busca primordial pelo conhecimento, pois se quisermos ser precisos só passamos a ter ciência depois de postulado o todo poderoso método cientifico. Do meu ponto de vista, filosofia ou ciência são duas faces da mesma moeda, a mãe e a filha se quiserem, ao que eu me quero aqui referir com ciência é a essa característica tão humana de procurar uma explicação para tudo o que nos rodeia. Assente esta questão, como foi então que o homem criou deus? Já todos ouvimos esta história, o homem vivia na sua caverna, ou na sua pequena povoação de barracas de argila, ou quando quer que tenha sido que a coisa aconteceu. E vivia atemorizado, sem compreender tudo o que o rodeava… Enfim, na minha opinião não vivia aterrorizado, apenas sentia curiosidade, a mais bela das nossas virtudes. Nunca saberemos como aconteceu, mas foi provavelmente numa conversa à beira de uma fogueira, numa noite algures na mesopotâmia, ou na Europa, ou até em África, que um homem, ou porque não uma mulher, com um pouco mais de imaginação, lançou à discussão uma ideia que tinha matutado na véspera enquanto guardava as ovelhas ou colhia frutos para o jantar: e se existirem seres poderosos, mas invisíveis, que controlam a Natureza? Era naturalmente uma ideia com pernas para andar, existiam tantas coisas incompreensíveis na Natureza. À volta deste homens primordiais a vida passava-se regida por ciclos de uma precisão inabalável, as marés, as estações, os ciclos de vida das plantas e dos animais, o tempo, até o corpo humano, as doenças, a gravidez, os ciclos menstruais das mulheres, o próprio envelhecimento, o nascimento… e claro, a morte, a dúvida primordial, o temor original. Fazia todo o sentido, todas estas coisas que não compreendemos são fáceis de aceitar se as atribuirmos aos poderes infinitos de seres desconhecidos que existem para lá da nossa compreensão, seja no céu, numa montanha longínqua ou nas profundezas inacessíveis do oceano.
A partir daqui a história conta-se por si. Todos nós já passamos pela experiência de estar a conversar com amigos e rapidamente criar toda uma realidade paralela imaginária, idealizar viagens imaginárias, planetas de sonhos, aspirações a vidas extraordinárias ou a existências diferentes. Dêem alguns milhares de anos à imaginação humana e a profundeza e beleza artístico-literária das mitologias politeístas greco-romanas não parecem sequer algo de tão complicado. Quem já conversou com uma criança de três anos sabe que não existe nada de mais poderoso que a imaginação humana.
Tudo isto seria uma história bonita para contar aos netos, se não tivesse entrado em cena uma luta antiga nesta história. Não, não estou a falar na luta entre o bem e o mal, estou a falar na verdadeira luta que rege toda a história das sociedades humanas, a luta entre o poder e a liberdade. Os seres humanos gostam, de forma geral, de ser livres, infelizmente gostam também de ter poder sobre os outros seres humanos, retirando-lhes a sua liberdade. Porquê? Biologia comportamental básica. Os nossos genes gostariam que nós deixássemos muita descendência, mesmo que nós próprios por vezes não tenhamos o mesmo ímpeto. Poder, desmontando todo o seu significado social, reduz-se a uma verdade biológica básica: nos machos, poder significa acesso a mais fêmeas, nas fêmeas, poder significa acesso a mais recursos. Em ambos os casos significa maximização da probabilidade de deixar descendência na próxima geração, exactamente o que os nossos genes, que já o Richard Dawkins dizia que eram egoístas até ao âmago, querem. Deixando para trás este à parte biológico, volto à história base. Existe uma luta constante entre poder e liberdade nas sociedades humanas e essa luta começou a certo ponto a usar as crenças divinas como armas.
Existem muitas formas de exercer poder sobre outrem. Através da violência, através da chantagem, através da superioridade intelectual, através da superioridade económica, através da diplomacia, entre outras. Num determinado ponto da nossa história, alguém percebeu que a forma mais eficaz de exercer poder sobre outrem é a crença. Se convencem alguém a acreditar em vocês esse alguém é vosso. Esse alguém irá fazer aquilo que lhe pedem pois acredita. Acredita que está a fazer o melhor para si próprio. Foi assim que nasceram religiões organizadas, surgiu o poder pelo controlo das crenças das massas. E não é coisa pouca, ainda à menos de um milénio atrás o Papa era o homem mais poderoso do mundo, ainda seria assim se não tivéssemos vivido um renascimento, se a pouco e pouco o conhecimento não tivesse a pouco e pouco iluminado a escuridão imposta pela igreja católica a toda a Europa. Mas lá chegaremos…
Estava eu a falar do politeísmo greco-romano. As coisas corriam bem para as religiões politeístas, até ter surgido o monoteísmo. De repente, em vez de toda uma multitude de deuses e divindades, alguém sugeria que afinal poderia existir um único deus. Mais simples, as pessoas poupavam nas oferendas, em vez de oferecerem um carneiro ao deus da agricultura, um porco ao deus da saúde e uma vaca ao deus da riqueza, podiam oferecer qualquer coisa a apenas um deus. Claro que no que diz respeito à luta pelo poder tratava-se de mais um passo corajoso. Estamos a falar de poder único e incontestado sobre toda a humanidade. Não estou a dizer que todos os profetas que professaram o monoteísmo faziam parte de uma conspiração para enganar toda a humanidade, provavelmente todos eles acreditavam realmente no que diziam. Há algo de curioso nas crenças humanas, se acreditarmos em algo com fé suficiente acabamos por ter a certeza que é real, reparem como tanta gente acredita piamente que Portugal pode ganhar o Campeonato do Mundo… Os seres humanos são fruto da sociedade que os rodeia, do que aprenderam e das experiências que viveram. Penso que esses profetas acreditavam realmente no que professavam. Estando a humanidade já ancestralmente sob sistemas de crenças divinas, o salto entre politeísmo e monoteísmo foi uma questão de eficácia e de carisma daqueles que o professaram. E sabemos que alguns eram realmente carismáticos, houve até dois ou três, um tal de Jesus Cristo, um tal de Maomé, entre outros que ainda hoje têm poder sobre a vida de milhares de milhões. A prova de que estes profetas eram honestos e não estavam interessados no poder de controlar a humanidade é o facto de não terem sido eles a criar as suas igrejas. Jesus Cristo nunca criou a igreja católica, na verdade, o que ele professava ia profundamente contra os ideais da igreja, dizia ele que deus vivia dentro de cada homem, não havia necessidade de uma igreja para por o homem em contacto com deus, cada homem tinha esse poder através da fé e do amor. Como não sei quase nada sobre o Islão, vou agora reduzir o âmbito deste texto aos limites geográficos do catolicismo. Falemos então do Império do Mal do título, esse instituição que vez mais e pior pela humanidade que qualquer outra em toda a nossa história, esse artefacto que fez mais pela limitação da liberdade do homem que qualquer regime totalitário, o erro primordial do mundo greco-romano, o verdadeiro pecado original, a sagrada igreja católica.
Quando surgiu então essa maldição da humanidade? Já o referi, Jesus Cristo não teve qualquer responsabilidade no assunto, aliás, a serem verdadeiros os famosos escritos que se diz terem sido escondidos pela igreja católica, que contém o verdadeiro evangelho de Jesus Cristo, ele dizia explicitamente que não deveria ser criada uma igreja para professar os seus ensinamentos. O suspeito do costume foi Pedro, o apóstolo mor, segundo reza a crença o primeiro Papa da igreja católica. Até pode ter sido, mas a verdadeira igreja católica, como a conhecemos hoje, a maquina infernal que sentenciou a Europa a dez séculos de escuridão e ignorância e foi quase bem sucedida no seu plano maquiavélico de exterminar a liberdade da humanidade, essa apenas surgiu alguns séculos depois. A igreja católica como instituição nasceu em 325, no concílio de Niceia, sob ordens do Imperador Constantino, aquele que reza a história ter sido o responsável pela conversão do império romano ao catolicismo. A verdade é bem menos nobre. Nos tempos de Constantino, o império romano era grassado por uma onda de violência social. As causas eram as habituais, as desigualdades sociais, eram os ricos cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres. Entre as camadas mais desfavorecidas, as ideias cristãs de igualdade entre todos os homens encontravam aceitação natural, num conceito socio-económico diferente teríamos de lhes chamar comunismo… Para apaziguar o povo, num manobra de incrível inteligência e premeditação, Constantino e os seus consortes idealizaram um plano intocável para exterminar a rebelião e recuperar o controlo do seu império. Bem conhecedor do poder que a crença tem sobre os homens, Constantino decidiu converter o seu império ao catolicismo, mas não ao catolicismo no sentido dos ideais liberais e progressistas professados por Cristo. O concílio de Niceia foi levado a cabo para criar de raiz a instituição que iria controlar os desígnios da Europa no milénio seguinte, todo o edifício de crenças, rituais, simbologias e distribuição de poderes que ainda hoje associamos à igreja católica nasceram nesse ponto preciso no tempo e no espaço. Nascia o único e verdadeiro Império do Mal. Até a cruz, o símbolo milenar do catolicismo nasceu no concílio de Niceia, até aí os seguidores de Cristo usavam um peixe como símbolo, o símbolo de Pedro, o pescador. É toda esta falsidade, até na sua origem, que me repugna na igreja católica.
O plano funcionou na perfeição, o povo caiu na armadilha. O símbolo do poder máximo na Europa espalhou-se rapidamente, primeiro no império romano, depois pelas terras bárbaras. O plano de Constantino funcionara, até bem de mais, o Papa, o novo poder imperial de Roma, tinha a população da Europa a seus pés. Nos milénios seguintes a igreja dedicou-se a consolidar o seu poder, destruindo, queimando, arrasando e assassinando todas as fontes de sabedoria que lhes pudessem fugir à censura e permitissem ao povo fugir ao seu controlo. A estupidez e a ignorância sempre foi a melhor forma de manter o povo sob controlo, até o nosso Salazar sabia bem disso. As cruzadas garantiram que os conhecimentos científicos greco-romanos, mantidos vivos pelos povos árabes, ficaram bem longe da Europa até ao século XIV, as “bruxas” eram perseguidas porque divulgavam conhecimentos básicos sobre plantas medicinais e outros saberes naturais que a igreja considerava perigosos. A inquisição perseguiu muitos dos primeiros verdadeiros cientistas nos primeiros séculos após o renascimento e mesmo nos tempos de Darwin, já bem perto do século XX, o degredo social a que as opiniões opostas às da igreja podiam forçar os pensadores levaram o grande naturalista britânico a ponderar longamente a decisão de expor a sua teoria revolucionária.Chegamos por fim à conclusão do raciocínio, a linha evolutiva que regeu as crenças da humanidade pode ser por fim resumida a um pequeno conjunto de relações de causa efeito: a ciência (lato sensu) criou deus, o desejo de poder criou a igreja, a igreja escravizou o homem, mas o desejo de conhecimento do homem nunca pode ser completamente escravizado, o sonho fez renascer a ciência (stricto sensu), a ciência tenta agora corrigir o seu erro original.
Trata-se de uma formulação diferente, uma busca de causalidades temporais, aparece aqui o resultado de um processo mental novo que a ciência ofereceu à humanidade. A ideia mais genial que saiu dos cânones da ciência moderna foi provavelmente o evolucionismo darwiniano, a evolução por selecção natural. Uma teoria inacreditavelmente simples, de uma elegância extrema, que não revolucionou apenas a Biologia, o ramo da ciência que a viu nascer, mas cujas repercussões se fizeram sentir em todos os campos da ciência e que, de certa forma, revolucionou todo o arcaboiço do pensamento humano. A teoria em si é hoje usada em campos tão diversos como a cosmologia, a física de partículas ou a química orgânica, mas a sua grande dádiva não foi a evolução em si, pois esse é um conceito com já mais de dois mil anos, nem foi mesmo essa selecção natural com que Darwin maravilhou o mundo biológico. O grande avanço que nasceu com o evolucionismo darwiniano foi o pensamento evolucionista, mas do que uma teoria, mais do que uma ideia ou um ideal, trata-se de uma forma de organizar o nosso pensamento, uma maneira de colocar as questões, uma forma de procurar respostas nos padrões da Natureza. É pois natural que eu, um biólogo que, como todos os biólogos modernos, trabalha diariamente com a ideia de evolução sempre a regular a minha compreensão da realidade, olhe para toda a questão da crença humana em deus e pergunte: como é que tudo isso começou? No fundo é a velha questão do ovo ou da galinha, terá sido deus a criar o homem ou o homem a criar deus? Do meu ponto de vista, mesmo sem aprofundar muito a questão, rapidamente se torna obvio que só a segunda hipótese faz sentido. Em ultima análise, foi a ciência que criou deus.
Neste momento, deixei de me referir à ciência no sentido estrito, na versão moderna do empirismo experimentalista de Bacon e Locke, passando a chamar ciência a algo de mais vasto, a todas as iniciativas do homem para preencher essa ansiedade básica que nos parece consumir desde o inicio da nossa consciência, a eterna procura pela compreensão da realidade que nos rodeia. Talvez fosse mais correcto chamar filosofia a essa busca primordial pelo conhecimento, pois se quisermos ser precisos só passamos a ter ciência depois de postulado o todo poderoso método cientifico. Do meu ponto de vista, filosofia ou ciência são duas faces da mesma moeda, a mãe e a filha se quiserem, ao que eu me quero aqui referir com ciência é a essa característica tão humana de procurar uma explicação para tudo o que nos rodeia. Assente esta questão, como foi então que o homem criou deus? Já todos ouvimos esta história, o homem vivia na sua caverna, ou na sua pequena povoação de barracas de argila, ou quando quer que tenha sido que a coisa aconteceu. E vivia atemorizado, sem compreender tudo o que o rodeava… Enfim, na minha opinião não vivia aterrorizado, apenas sentia curiosidade, a mais bela das nossas virtudes. Nunca saberemos como aconteceu, mas foi provavelmente numa conversa à beira de uma fogueira, numa noite algures na mesopotâmia, ou na Europa, ou até em África, que um homem, ou porque não uma mulher, com um pouco mais de imaginação, lançou à discussão uma ideia que tinha matutado na véspera enquanto guardava as ovelhas ou colhia frutos para o jantar: e se existirem seres poderosos, mas invisíveis, que controlam a Natureza? Era naturalmente uma ideia com pernas para andar, existiam tantas coisas incompreensíveis na Natureza. À volta deste homens primordiais a vida passava-se regida por ciclos de uma precisão inabalável, as marés, as estações, os ciclos de vida das plantas e dos animais, o tempo, até o corpo humano, as doenças, a gravidez, os ciclos menstruais das mulheres, o próprio envelhecimento, o nascimento… e claro, a morte, a dúvida primordial, o temor original. Fazia todo o sentido, todas estas coisas que não compreendemos são fáceis de aceitar se as atribuirmos aos poderes infinitos de seres desconhecidos que existem para lá da nossa compreensão, seja no céu, numa montanha longínqua ou nas profundezas inacessíveis do oceano.
A partir daqui a história conta-se por si. Todos nós já passamos pela experiência de estar a conversar com amigos e rapidamente criar toda uma realidade paralela imaginária, idealizar viagens imaginárias, planetas de sonhos, aspirações a vidas extraordinárias ou a existências diferentes. Dêem alguns milhares de anos à imaginação humana e a profundeza e beleza artístico-literária das mitologias politeístas greco-romanas não parecem sequer algo de tão complicado. Quem já conversou com uma criança de três anos sabe que não existe nada de mais poderoso que a imaginação humana.
Tudo isto seria uma história bonita para contar aos netos, se não tivesse entrado em cena uma luta antiga nesta história. Não, não estou a falar na luta entre o bem e o mal, estou a falar na verdadeira luta que rege toda a história das sociedades humanas, a luta entre o poder e a liberdade. Os seres humanos gostam, de forma geral, de ser livres, infelizmente gostam também de ter poder sobre os outros seres humanos, retirando-lhes a sua liberdade. Porquê? Biologia comportamental básica. Os nossos genes gostariam que nós deixássemos muita descendência, mesmo que nós próprios por vezes não tenhamos o mesmo ímpeto. Poder, desmontando todo o seu significado social, reduz-se a uma verdade biológica básica: nos machos, poder significa acesso a mais fêmeas, nas fêmeas, poder significa acesso a mais recursos. Em ambos os casos significa maximização da probabilidade de deixar descendência na próxima geração, exactamente o que os nossos genes, que já o Richard Dawkins dizia que eram egoístas até ao âmago, querem. Deixando para trás este à parte biológico, volto à história base. Existe uma luta constante entre poder e liberdade nas sociedades humanas e essa luta começou a certo ponto a usar as crenças divinas como armas.
Existem muitas formas de exercer poder sobre outrem. Através da violência, através da chantagem, através da superioridade intelectual, através da superioridade económica, através da diplomacia, entre outras. Num determinado ponto da nossa história, alguém percebeu que a forma mais eficaz de exercer poder sobre outrem é a crença. Se convencem alguém a acreditar em vocês esse alguém é vosso. Esse alguém irá fazer aquilo que lhe pedem pois acredita. Acredita que está a fazer o melhor para si próprio. Foi assim que nasceram religiões organizadas, surgiu o poder pelo controlo das crenças das massas. E não é coisa pouca, ainda à menos de um milénio atrás o Papa era o homem mais poderoso do mundo, ainda seria assim se não tivéssemos vivido um renascimento, se a pouco e pouco o conhecimento não tivesse a pouco e pouco iluminado a escuridão imposta pela igreja católica a toda a Europa. Mas lá chegaremos…
Estava eu a falar do politeísmo greco-romano. As coisas corriam bem para as religiões politeístas, até ter surgido o monoteísmo. De repente, em vez de toda uma multitude de deuses e divindades, alguém sugeria que afinal poderia existir um único deus. Mais simples, as pessoas poupavam nas oferendas, em vez de oferecerem um carneiro ao deus da agricultura, um porco ao deus da saúde e uma vaca ao deus da riqueza, podiam oferecer qualquer coisa a apenas um deus. Claro que no que diz respeito à luta pelo poder tratava-se de mais um passo corajoso. Estamos a falar de poder único e incontestado sobre toda a humanidade. Não estou a dizer que todos os profetas que professaram o monoteísmo faziam parte de uma conspiração para enganar toda a humanidade, provavelmente todos eles acreditavam realmente no que diziam. Há algo de curioso nas crenças humanas, se acreditarmos em algo com fé suficiente acabamos por ter a certeza que é real, reparem como tanta gente acredita piamente que Portugal pode ganhar o Campeonato do Mundo… Os seres humanos são fruto da sociedade que os rodeia, do que aprenderam e das experiências que viveram. Penso que esses profetas acreditavam realmente no que professavam. Estando a humanidade já ancestralmente sob sistemas de crenças divinas, o salto entre politeísmo e monoteísmo foi uma questão de eficácia e de carisma daqueles que o professaram. E sabemos que alguns eram realmente carismáticos, houve até dois ou três, um tal de Jesus Cristo, um tal de Maomé, entre outros que ainda hoje têm poder sobre a vida de milhares de milhões. A prova de que estes profetas eram honestos e não estavam interessados no poder de controlar a humanidade é o facto de não terem sido eles a criar as suas igrejas. Jesus Cristo nunca criou a igreja católica, na verdade, o que ele professava ia profundamente contra os ideais da igreja, dizia ele que deus vivia dentro de cada homem, não havia necessidade de uma igreja para por o homem em contacto com deus, cada homem tinha esse poder através da fé e do amor. Como não sei quase nada sobre o Islão, vou agora reduzir o âmbito deste texto aos limites geográficos do catolicismo. Falemos então do Império do Mal do título, esse instituição que vez mais e pior pela humanidade que qualquer outra em toda a nossa história, esse artefacto que fez mais pela limitação da liberdade do homem que qualquer regime totalitário, o erro primordial do mundo greco-romano, o verdadeiro pecado original, a sagrada igreja católica.
Quando surgiu então essa maldição da humanidade? Já o referi, Jesus Cristo não teve qualquer responsabilidade no assunto, aliás, a serem verdadeiros os famosos escritos que se diz terem sido escondidos pela igreja católica, que contém o verdadeiro evangelho de Jesus Cristo, ele dizia explicitamente que não deveria ser criada uma igreja para professar os seus ensinamentos. O suspeito do costume foi Pedro, o apóstolo mor, segundo reza a crença o primeiro Papa da igreja católica. Até pode ter sido, mas a verdadeira igreja católica, como a conhecemos hoje, a maquina infernal que sentenciou a Europa a dez séculos de escuridão e ignorância e foi quase bem sucedida no seu plano maquiavélico de exterminar a liberdade da humanidade, essa apenas surgiu alguns séculos depois. A igreja católica como instituição nasceu em 325, no concílio de Niceia, sob ordens do Imperador Constantino, aquele que reza a história ter sido o responsável pela conversão do império romano ao catolicismo. A verdade é bem menos nobre. Nos tempos de Constantino, o império romano era grassado por uma onda de violência social. As causas eram as habituais, as desigualdades sociais, eram os ricos cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres. Entre as camadas mais desfavorecidas, as ideias cristãs de igualdade entre todos os homens encontravam aceitação natural, num conceito socio-económico diferente teríamos de lhes chamar comunismo… Para apaziguar o povo, num manobra de incrível inteligência e premeditação, Constantino e os seus consortes idealizaram um plano intocável para exterminar a rebelião e recuperar o controlo do seu império. Bem conhecedor do poder que a crença tem sobre os homens, Constantino decidiu converter o seu império ao catolicismo, mas não ao catolicismo no sentido dos ideais liberais e progressistas professados por Cristo. O concílio de Niceia foi levado a cabo para criar de raiz a instituição que iria controlar os desígnios da Europa no milénio seguinte, todo o edifício de crenças, rituais, simbologias e distribuição de poderes que ainda hoje associamos à igreja católica nasceram nesse ponto preciso no tempo e no espaço. Nascia o único e verdadeiro Império do Mal. Até a cruz, o símbolo milenar do catolicismo nasceu no concílio de Niceia, até aí os seguidores de Cristo usavam um peixe como símbolo, o símbolo de Pedro, o pescador. É toda esta falsidade, até na sua origem, que me repugna na igreja católica.
O plano funcionou na perfeição, o povo caiu na armadilha. O símbolo do poder máximo na Europa espalhou-se rapidamente, primeiro no império romano, depois pelas terras bárbaras. O plano de Constantino funcionara, até bem de mais, o Papa, o novo poder imperial de Roma, tinha a população da Europa a seus pés. Nos milénios seguintes a igreja dedicou-se a consolidar o seu poder, destruindo, queimando, arrasando e assassinando todas as fontes de sabedoria que lhes pudessem fugir à censura e permitissem ao povo fugir ao seu controlo. A estupidez e a ignorância sempre foi a melhor forma de manter o povo sob controlo, até o nosso Salazar sabia bem disso. As cruzadas garantiram que os conhecimentos científicos greco-romanos, mantidos vivos pelos povos árabes, ficaram bem longe da Europa até ao século XIV, as “bruxas” eram perseguidas porque divulgavam conhecimentos básicos sobre plantas medicinais e outros saberes naturais que a igreja considerava perigosos. A inquisição perseguiu muitos dos primeiros verdadeiros cientistas nos primeiros séculos após o renascimento e mesmo nos tempos de Darwin, já bem perto do século XX, o degredo social a que as opiniões opostas às da igreja podiam forçar os pensadores levaram o grande naturalista britânico a ponderar longamente a decisão de expor a sua teoria revolucionária.Chegamos por fim à conclusão do raciocínio, a linha evolutiva que regeu as crenças da humanidade pode ser por fim resumida a um pequeno conjunto de relações de causa efeito: a ciência (lato sensu) criou deus, o desejo de poder criou a igreja, a igreja escravizou o homem, mas o desejo de conhecimento do homem nunca pode ser completamente escravizado, o sonho fez renascer a ciência (stricto sensu), a ciência tenta agora corrigir o seu erro original.